Ilações acerca da mentira

“Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades.”

Caio Fernando Abreu

Será que minto? Acho que nunca fui um grande mentiroso e acreditei com todas as forças nisso, tanto mais quando uma mulher a quem eu admiro, venero e tenho tesão me pôs no meu lugar quando eu tentava engrupi-la com uma conversa mole cujo teor não lembro, afirmando com um angélico sorriso que só ela tem que sou um péssimo mentiroso. Deveras! Nunca tive prazer em contar patranhice alguma, ao contrário, as mentiras que tive que contar a alguém ao longo de minha besta existência foram sempre forçadas pelas circunstâncias para as quais o remendo saia sempre pior que o soneto.

Se bem que a mentira está nas ruas, rondando as conversas, muitas vezes travestidas de verdade; grudou-se aos fatos da história como ativo de guerra, espólio da má política, dessa má política que sempre nos governou. Ao atual mandatário do país, cuja inteligência intelectual faz um grão de ervilha parecer um sistema planetário, atribui-se-lhe a mentira como sua maior realização política. Segundo a agência Lupa, a grande maioria das afirmações desse governante “anta-lógico” é mentirosa ou fundamentada em mentiras convenientes a sua verborragia inconsequente.

Se a mentira na maioria das vezes se colore de tons dramáticos, quando corrói o nobre metal da moral religiosa, vira tragicomédia. Foi o que aconteceu quando o pastor Uédson Nascimento avisou aos seus fiéis que na semana seguinte pregaria sobre a mentira, o que o levou a pedir à assembleia que lessem o capítulo 17 do livro de Marcos. Na outra semana, pediu que levantassem a mão os que haviam procedido a leitura, quase todos da assembleia assentiram positivamente. O pastor pegou-os na mentira mais deslavada: o livro de Marcos não tem 17 capítulos. Desculpa, acho que menti: o fato não ocorreu com o pastor Uédson. Perdão Senhor!

Minha mãe sempre nos fez acreditar (a mim e a meus irmãos) que a mentira era um dos piores pecados e, como tal, perfeitamente capaz de nos levar diretinho ao fogo do inferno. Quando criança, era melhor pensar duas vezes antes de inventar uma endrômina, pois se descoberta (e se descobria facilmente), a surra de cinto era certa e longamente conversada. Meu pai tampouco era homem afeito a mentiras, mas, como amante de uma boa prosa, não se furtava em nos contar narrativas com temas sobre a mentira.

Eis uma delas: ele contava que um tio de um chegado seu tinha a posse de uma tropa de burros que carregava sal do litoral para vender no sertão. Numa semana, estando no sertão, soltou os seus burros que desapareceram. Buscou-os por várias partes sem sucesso, até que deparou com uma enorme roça de abóboras que, por sinal, eram muito grandes. Encontrou uma abóbora com um furo do tamanho de um portão de hangar e por ele entrou; três dias depois de longa e penosa caminhada fruto adentro encontrou seus animais que pastavam parte da abóbora semiapodrecida. E papai terminava a anedota dando voz a um ouvinte do narrador deste “causo” que após o final da história dos burros na abóbora, disse ter presenciado, quando era seringueiro no Amazonas, um fato singular no meio da floresta, nas margens do Madeira: trezentos ferreiros trabalhavam frenéticos numa panela do tamanho do Plano Piloto da cidade de Brasília. Ao terminar sua narrativa, ouviu o homem dos burros perguntar:

- Por que será que queriam uma panela tão grande?

- Ora, para cozinhar tua abóbora, meu caro amigo!

Afora o tom pândego das anedotas, as mentiras inocentes contadas em tom ameno podem ter efeitos curativos, aproximar amigos, criar relações de compadrio, principalmente se ocorrer com um copo de caninha na mão, defronte a um balcão de bar. E por falar em bar em Brasil Novo, houve um tal de Saturnino que reinou por eles durante duas décadas pelas goladas, mas, sobretudo, pelas balelas tão bem arquitetadas de absurdo que contava com garbo aos bebuns contumazes. Virou lenda.

Mas eu não... não virei lenda nem aprendi a mentir com a sofisticação encantadora de Saturnino. Quando sou obrigado a embuste, suo frio, gaguejo, e quando me vejo despido de argumento para sustenta-lo, muitas vezes apelo para a ironia ou para, em último caso, o confronto verbal. Dessa maneira, não achei outra forma senão a de me manter distanciado das mentiras. Passo bem somente em ouvi-las.

É aí que entra em cena um tal de João Sete Lapadas (é um nome fictício, é claro, pois o sujeito vive entre nós). Encontrei-o por acaso numa de minhas caminhadas que faço pelo calçadão na frente da cidade. Ele é retaco, de pele amorenada e lustrosa, semelhante a um índio caiapó do Xingu; também tem riso fácil e durante suas caminhadas, o que menos importa é a caminhada propriamente. Ele está sempre atendendo o celular e quando não, mentindo. Mente com uma alegria tão genuína que seu monólogo (nunca me deixa falar) chega a ter uma atmosfera poética, literária, dada a espantosa capacidade para a invencionice que João demonstra.

É chacareiro e na sua terra, os sapos pulam por sobre as castanheiras seculares como se fossem cangurus ou outro animal ainda não catalogado pela biologia. Uma onça de lá sobe no curral com cinco reses adultas sobre o lombo, depois de abatê-las com sua patada atômica. Cada galinha sua bota quinze ovos por dia. Perguntei-lhe se suas galinhas eram de raças importadas dos Estados Unidos ou da Europa. Sei lá... da raça Australorp, New Hampshire ou Plymouth Rock Barrada... e ele respondeu ofendido que era nacionalista e que criava galinhas da terra. Disse-me que trouxe seu cachorro para o veterinário em Brasil Novo, pois estava escambichado; indaguei se fora atropelado e disse que não, que o animal estava assim por causa do peso das pulgas, cada uma com dois quilos, se pouco.

Mas a gota d’água de sua patacoada transbordou quando, ainda discorrendo sobre os seus cães, todos exímios galgos, narrou-me com detalhes o caso do seu cão de nome Felpudo engolido por uma jararaca de pouco mais de um metro que costumava passear pela cumeeira de sua casa com pose de quem é considerada como um animal de estimação pelas crianças da família. Achei a mentira desairosa demais, se bem que todas são, e resolvi intervir:

- João... vê lá homem, não era uma sucuri?

- Ô professor, cê tá duvidando?

- Mas é que... uma jararaca não costuma a ficar trepada na cumeeira, nem, tampouco, engole um cão...

- Mas na minha chácara engole. Já a sucuri engole coisa bem maior.

- Como o quê, por exemplo?

- No ano passado, meu cunhado que mora em Altamira veio passar um final de semana comigo e foi pescar na lagoa próxima a minha casa. Estacionou seu micro-ônibus de 28 assentos bem próximo à água e desceu pela margem tarrafeando. Quando olhou para trás não viu mais o seu veículo. Não é que uma cobra sucuri havia saído da lagoa e engolido o busão, depois sumido floresta adentro?

- E aí, João, o que aconteceu depois?

- Nada ora, Cicim com muito custo achou a danada, mas com pena de matá-la, esperou seis semanas para a cobra vomitar o ônibus...

- Mas que coisa! – disse-lhe, contendo o riso teimoso.

- Professor, foi uma lástima. Cicim ganhava o pão de cada dia fazendo linha de Altamira para Medicilândia. Rapaz, o homem sem saber o que fazer, quase passou fome. Já pensou passar um mês sem trabalhar?

Contei esta anedota na sala de espera do Hospital Regional da Transamazônica e no epílogo da narrativa cometi um algo imperdoável, ao formular a seguinte pergunta:

- Me digam, será que existe um sujeito mais mentiroso que João V. (disse o nome do mentiroso, meu Deus!)

Um velho de cabeleira encanecida levantou a mão e respondeu:

- Tem sim, eu, o pai de João V. Eu lhe ensinei a mentir.

Não soube onde meter a cara. Que mundo pequeno!

Não fique você com pena do meu constrangimento, caro leitor. É que acabo de mentir ou sei lá, virar escritor... Mas o certo é que esta história nunca aconteceu.

Manoel Araújo.

Brasil Novo, 04 de abril de 2019.

ELMANO ARAUJO
Enviado por ELMANO ARAUJO em 05/04/2019
Reeditado em 06/04/2019
Código do texto: T6616061
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