QUAL VIDA É IMORTAL?
Aclibes Burgarelli
Aclibes Burgarelli
Pensamento. Quando se sente bater, no peito heroica pancada, deixa-se a folha dobrada enquanto se vai morrer.
Quem nunca ouviu falar de alguém que de tudo faz um pouco? Vitor foi esse alguém. Desde menino fascinara-lhe todo e qualquer trabalho que exigisse habilidade manual. Foi engraxate de porta de bar, vendedor de bugigangas nas praças públicas da grande cidade em que morou, foi auxiliar de alfaiate, vendedor de amendoim, de refresco em futebol da várzea, auxiliar de serralheiro, de marceneiro, de costureiros, de sapateiro, de farmácia, entregador de camisas feitas à mão, pastor de cabras, aprendiz de cozinha, carvoeiro, vendedor avulso de roupas, músico, telegrafista, jogador de futebol, coroinha e mariano de Igreja católica, servente de pedreiro e outro tanto de atividades profissionais exerceu, porém o passar do tempo lhe apagou da memória as lembranças.
Orgulhava-se em dizer que nunca lhe faltara dinheiro, embora não pudesse ser considerado abastado ou rico; era pessoa afortunada, mas não de riqueza material. O entusiasmo que ele nutria pela vida o transformara em pessoa feliz, otimista e esperançoso a respeito de qualquer empreitada a que se lançava na vida profissional e na crença de sua formação pessoal. Tinha conhecimento de suas limitações, quanto ao acesso cultural, mas jamais cultivou a possibilidade de fracasso.
Vitor não foi uma criança nota dez nos estudos fundamentais por quais passam aqueles que conseguem acesso ao estudo; mesmo assim não se considerava desprovido de capacidade para conhecimento adequado às suas aspirações não exageradas; no que aspirava ser, aos poucos e com dificuldade, conseguiu êxito.
Uma das primeiras frustrações que, felizmente, não se transformou em recalque, ocorreu no curso ginasial; certo de que não levava a sério o estudo, melhor, no seu entender, abandoná-lo e tentar algo menos exigente. Tinha, naquele tempo, excelente emprego, sem perspectiva de demissão; ao contrário, com perspectiva de estudo a respeito da profissão e promoções futuras, o que efetivamente aconteceu até o momento em que a empresa tradicional, inglesa, encerrou as atividades no Brasil; mas, para Vitor, que já havia chegado ao ápice de sua atividade, o fato não lhe trouxe preocupação, visto como já havia retornado aos estudos, concluído o curso ginasial, completado o curso colegial e com ingresso em tradicional universidade pública, cuja formação então se concluía para que, na qualidade de profissional liberal, iniciasse novo trabalho com ganho razoável para sustento da família.
Certo é que se saia bem em toda e qualquer atividade que iniciava, porque, sem o saber, recebia ajuda espiritual de alguém que com ele se preocupava e o acompanhava nos passos da vida. Vitor sentia que havia alguém, mas não se preocupava em saber mais a respeito. A ele bastava essa crença, o respeito por esse sentimento e a fé de que tudo para ele daria certo. Não sentia inveja de quem fosse melhor do que ele; sentia sim estimulo desafiante para que pudesse chegar ao mesmo patamar de quem pudesse lhe despertar fascinação.
Décadas e décadas passaram e Vitor se saia bem em todas as investidas de progresso, repita-se sem nunca ter sido rico ao ponto de ser afetado na maneira de viver e se afastar de suas origens; ao contrário, as suas origens traziam orgulho e exibia retratos, cartas e outros documentos daqueles momentos que, muitos, por causa do orgulho e vaidade, pretendem esconder.
Certa feita foi tomado de tristeza porque seu filho, menino, desmontou a caixa de engraxate que montara para ganhar uns trocados e onde escrevera, com tinta de sapateiro, em um dos lados o seguinte “CZ 2,00”. Sentia falta daquele objeto que, por certo, serviria de decoração de seu luxuoso gabinete de trabalho, na idade madura. Nunca sentira vergonha de seu dedicado pai que, humilde servidor de café, em uma repartição pública, fotografou-se, sorrindo feliz, segurando um bule, atrás de um balcão, durante certo congresso para o qual fora designado, a fim de servir o famoso “cafezinho” brasileiro.
Aquela fotografia representava um pedaço da vida de Vitor, as gotas de sangue que fluíam em suas veias, a gravação feita na memória a respeito do arrojo profissional do pai que sempre teve mais do que um emprego, tudo em favor da família. Ali estava o herói de Vitor, ali estava seu estímulo e seu orgulho, portanto aquela foto devia ser exibida sem rusga de vergonha, ao contrário como se fora o grande troféu de vida.
Certa feita, Juca, um amigo de infância, já na fase adulta, em coversa com Vitor, no gabinete deste, ao comentar o passado do amigo fez uma revelação que lhe tocou fundo o coração. Disse o amigo que o motivo da grande admiração e respeito por Vitor estava no fato de que ele sempre exibiu, com destaque, a fotografia do pai, sem que este fosse autoridade de renome e sim humilde funcionário servidor de cafezinhos na repartição.
Vitor, na senda da vida, galgou posições invejáveis e conseguiu progresso nas atividades abraçadas, porém, na idade adulta sentiu profunda atração para o estudo de filosofia, graças à influência que recebera de um grande amigo, professor de filosofia, o Dr. Mário Ferreira dos Santos, que conhecera e cuja residência frequentara por muito tempo aprendendo filosofia. O digno e respeitável professor desfrutava de inteligência distinta, autor de muitos livros, ex aluno e professor das melhores faculdades públicas do Estado e tão humilde que permitia ser visitado por quem se interessasse por filosofia no recôndito do lar. Vitor guarda, até hoje, grande acervo das obras daquele inesquecível mestre.
É importante anotar, porque o fato poderá servir de exemplo, que Vitor não alimentava aspirações ou intenções de alçar voos altos, ao contrário procurava participar de grupo que tivesse interesse, dedicação e garra para enfrentar certas tarefas, de qualquer ordem. Interessante, que nessa linha de comportamento, em regra Vitor se destacava e, por causa, do objetivo era indicado para liderança do grupo ou para auxiliar o líder.
Às vezes Vitor se punha a refletir sobre sua vida e não acreditava como as coisas aconteciam naturalmente com ele, se, para outros, eram consideradas difíceis e às vezes impossíveis. Vitor sempre atribuía o sucesso a uma ajuda externa, espiritual, porque, quando cabia a ele pleitear algo, as condições para o pleito se alteravam e se tornavam favoráveis à intenção.
Um exemplo pode ser dado e, apenas um, porque muitos outros existiram. Se Vitor, como sempre fazia, vinha a alimentar um desiderato, por exemplo a indicação para o exercício de certa função, mas, para tanto, a condição era aprovação em um concurso, as regras rígidas do concurso eram alteradas, favoravelmente a Vitor, e, ao depois, retornavam ao estado anterior. Assim Vitor era favorecido, porque conseguia ser aprovado com seu conhecimento compatível com a exigência.
Não foi uma tampouco duas vezes que fatos, que poderiam parecer absurdos, aconteceram; foram muitos e, a cada acontecimento, Vitor preocupava-se mais, não pelo acontecido, mas pela responsabilidade que, tinha a certeza, deveria assumir; não sabia como e quando, porém sabia que algo lhe seria cobrado, não em dinheiro, mas em conduta.
De modo tímido, é verdade, buscou assumir responsabilidade e, à sua maneira, sem formação mística acentuada suficiente para tirá-lo da condição de místico curioso, cuidava de fazer o que, espiritualmente, se chama de caridade, sem ostentação. Sentia uma gota de conforto nos momentos em que, procurado por alguém, conseguia, ainda que com um conselho ou pequena explicação, transmitir alento de alívio.
Contraiu matrimônio, formou família e veio a prole. O casamento não foi ato impensado, ao contrário foi fruto de firme decisão, em idade adulta, para não ter de passar por momentos de arrependimento. É evidente que, a linha de pensar e de agir fez com que o casamento de Vitor durasse muito tempo, sem que deixasse de sentir, pela esposa, o mesmo amor que sentira quando a conhecera.
O quadro até aqui, revelado pessoalmente por Vitor, foi destacado por causa da influência que exerceu na formação dele, sendo certo que caracterizou o modo de vida até a sétima década de vida.
Aos setenta anos de existência, um relâmpago mental aconteceu seguido de trovões assustadores a anunciarem abalo no futuro daquela metódica pessoa; possibilidade de mudança de vida, justamente de quem sempre agira, despreocupadamente, com as provas da vida. Com o susto ficou preocupado, pois se tratava de sensação estranha nunca dantes experimentada.
Mesmo nos momentos de reflexão os relâmpagos não cessavam e a tempestade era esperada; com a expectativa o medo, a sensação de insegurança e o estado de alma de frustração absoluta ocuparam seu estado mental.
Vitor sempre fora um matemático espiritual, ou seja projetava o futuro e acrescentava condicionantes, a fim de formar uma equação cuja solução haveria de ser considerada verdade inexorável.
A bem da verdade, a projeção do futuro de Vitor era feita de modo bastante lógico, sem o que não chegaria a uma conclusão salutar. Se a conclusão era verdadeira ou não pelo menos era lógica; considerando que tudo que é lógico oferece certo conforto espera conclusão da qual pudesse não se arrepender. E essa conclusão era acerca de toda sua vida e, de repente, da ideia de se aproximar do fenômeno morte, algo de que não cogitara antes.
A demonstração científica poderia até contrariar a maneira de pensar de Vitor e fixar a regra de que a morte é inexorável em relação ao ser humano. Vitor, portanto, na condição de ser humano, um dia morreria.
Essa posição científica, contudo não era objeto da preocupação de Vitor; preocupava-lhe o que poderia acontecer após seu desencarne, não com ele, mas com seus familiares. Em assim sendo, antes do evento irreversível, buscara ele o manejo de uma única ferramenta plausível cuja utilização proporcionasse um sentimento de aceitação da morte, mas sentimento lógico.
No uso da ferramenta mental, partiu da seguinte premissa: - O que acontecerá com meus familiares, após minha morte, diante dos problemas financeiros que surgirão imediatamente?
Se essa questão partisse de outrem, provavelmente diriam o que Vitor já tinha ouvido, mais ou menos assim:
- Cada um resolverá por si o seu problema!
– Deus não desampara seus filhos e, bem ou mal, cada um encontrará a solução!
- A preocupação de quem ajuda é diferente da preocupação de quem é ajudado, mas cedo ou tarde este aprenderá a sobreviver!
Por certo nessa linha de explicações seguiriam as justificativas, porém, para Vitor que não sabia se estava certo ou não, a vida se resumia no auxílio dos familiares. Assim pensava Vitor e esse pensamento para ele era um axioma. Anote-se que, sem se pretender formular juízo de valor, parece que esse sempre foi o ponto falho de Vitor, ou seja de fixar algo que pudesse beneficiar o grupo, sem cogitar se o benefício era desejado. No unilateral entendimento dele, Vitor, não havia ponto crítico mas posição da qual não queria se desligar.
Diante da postura de Vitor como ficaria esta indagação: Será que a dádiva, apesar de ser ato de caridade e trazer resultado bom, corresponde ao desejo de quem a recebe, da maneira como foi prestada? Não estaria este a se sentir humilhado?
Vitor se lembrou dos sucessos pessoais ao longo da vida; dos obstáculos que foram transpostos e da posição que galgou e que, de repente, para ele tocaram as trombetas do fim. Viu, com os olhos da alma, a sucessão das cenas da vida, uma após outra como em um filme a exibir toda sua trajetória de sucesso. Não conseguia admitir a possibilidade de, abruptamente, ocorrer solução de continuidade para aquelas cenas da vida. Todas se seguiam, de maneira diferente, mas havia um elo que ligava a anterior à seguinte, estabelecendo uma lógica de progresso pessoal sem intenção de constrangimento em quem quer que fosse.
O pensar de Vitor quanto ao desencarne, era um pensar que contrariava toda a conduta de vida até então por ele adotada; toda a conduta que não sofrera, em momento algum, interrupção. Por essa razão se sentiu frágil ante a possibilidade de solução de continuidade e desfecho terrível. Indagou a si próprio se não travara, ao longo das décadas, uma batalha de Pirro.
Afinal, depois de tanta luta, depois da certeza de que nunca lhe faltara ajuda, não seria crível que aquela ideia significasse a derrota, o findar de tudo o ponto final da existência de Vitor. E mais com reflexos na segurança financeira da família.
Recompôs-se, no amplo depósito espiritual de ideias que guardara para utilização em momentos como o que passava, e engrenou, como sempre o fizera, um plano para o futuro. Mas qual futuro se a velhice o ameaçava, sem dó ou piedade, com imenso furor?
Pensou e pensou muito; concluiu que havia necessidade de dar alguns passos firmes, mesmo que sua tranquilidade material e financeira fosse ameaçada; afinal, a morte seria mesmo o fim dessa tranquilidade, então porque se preocupar com essa situação, se partira da premissa de que o futuro vai além dessa vida material? Além da vida material? Eureka; encontrou a chave do enigma.
O planejamento foi adotado e firmou a seguinte regra para ser seguida: Em primeiro lugar deixar de gastar dinheiro com coisas que, na fase da velhice, não eram tão importantes como antes e, guardar, de preferência uma parte em casa e outra parte em poupança bancária, o que fosse possível.
Não foi difícil essa primeira providência, porquanto a razão lhe proporcionara a convicção de que, na velhice, há vontades pessoais dispensáveis: viagens, troca de veículos, restaurantes caros, roupas de moda onerosas, presentes etc.
Segundo passo, tentar se preocupar mais com o progresso espiritual e ocupar seu tempo na busca de esclarecimentos a respeito de como agir diante do desencarne.
O segundo passo dependia somente da coragem de Vitor, porque subverteria toda a ordem por ele adotada na direção de seus atos até aquele momento de reflexão. De qualquer maneira os dois passos foram dados, a partir do momento em que percebeu que todos os seus projetos dos quais se sucederam as realizações de vida esvaziavam-se; esvaziando-se essas realizações não havia como se admitir a queda das vitórias. Vitor entretanto enxergou, com ajuda da espiritualidade, algo que não pressentira antes, ou seja a mudança que pretendia fazer seria sua grande e derradeira vitória?
Pensou e pensou muito e percebeu algo de bom nos dois passos cogitados. Em primeiro lugar, com as economias guardadas, mais o recebimento de outros valores que seriam efetivados por causa de sua morte, seus familiares disporiam de numerário suficiente para as necessidades no mínimo por um ano; isso se não ocorresse surpresa em face da inflação que surge de tempos em tempos.
Quanto ao segundo passo, percebeu que o conhecimento do porvir é muito mais importante do que toda a vida por qual passara. Considerou essa vida como se fosse uma hospedagem em um hotel de veraneio. Hospedagem temporária, porque necessariamente, por se tratar de veraneio, um dia a pessoa seria obrigada a retornar para casa. Considerou Vitor que ele e todos os seus familiares, todos passariam à condição de hóspedes; logo, hospedes que também, um dia, retornariam para casa.
A partida de um hóspede, mesmo que seja antes de outro, poderá não ser ato agradável para quem permanece no hotel, porque sentirão a falta daquele que foi para casa. No entanto, haverá o lenitivo de que eles, os que ficaram, também um dia retornarão para casa e lá encontrarão quem deixou o hotel antes.
Aos poucos, Vitor tomou consciência de que o retorno para casa era muito mais importante do que a permanência no hotel, porque era em casa que os familiares assumiam responsabilidades. No hotel, ao contrário, tudo era feito de acordo com a vontade de cada um sem compromissos sérios.
Não se soube, porque não foi revelado por Vitor, quanto tempo ficou hospedado no hotel imaginário, ao lado dos familiares, tampouco se revelou de que forma os mesmos familiares permaneceram no hotel.
Algo ficou bem claro. Ao cabo de toda a vida humana de Vitor este conseguira a superação de muitos obstáculos e seguiu, com alguns tropeços, direção adequada para bem chegar no fim da estrada. Embora a trajetória tivesse sido bem traçada, certo é que, não houve final da caminhada, mas feliz parada para preparação, esclarecimentos e ânimo para a verdadeira e outra caminhada para frequência em outras escolas da vida; assim se espera, porque, a partir de então, Vitor vivera sem o corpo físico e, melhor dizendo, a vida não será Vitor, mas a Alma que se alojou em quem recebeu o nome Vitor. A conclusão, portanto, é que a vida continua.
Ora, se a vida continua, em outro plano, em outra dimensão sem um corpo denso a hospedar o espírito, é evidente que há necessidade de preparação para tanto, porque a preparação afasta o temor do desconhecido. Se o desconhecido passar à condição de conhecido, por óbvio não haverá temor. Aliás é de Sócrates a recomendação conhece-te a ti mesmo. A ti mesmo não significa conhecer o corpo hospedeiro da alma, mas conhecer a alma que um dia deixará o corpo.
Uma vez que, supostamente, morte é ausência de vida, os viventes humanos temem-na. Porém esses mesmos viventes não percebem que morte, de fato é negação da vida, mas da vida corporal, da vida carnal não da vida espiritual. O espírito é imortal.
Se temer a morte é temer a cessação da vida biológica, teme-se por algo que não existe, porquanto o corpo físico também não morre; ao contrário transforma-se em outros elementos físicos. Bem pensada a questão o temor é gerado por ação mental desenvolvida pelas condições do organismo físico e psíquico.
Se organismo físico deixar de funcionar, não haverá mais como produzir o temor. E mais, não existe morte do corpo físico, mas transformação elementar das células e tecidos. Veja-se quão sem lógica é o temor pela morte, mormente se se atentar para o fato de que o espírito é imortal e a imortalidade do espírito não aceita a ideia de morte; não a aceitando porque falar em temor da morte do corpo se este também não morre e sim passa por transformação física; Afinal temer o que?
Conforme foi dito, não se sabe o que aconteceu a Vitor, mas certo é que o espírito que ocupou o corpo Vitor permanecerá na condição de imortal.
O curto espaço de tempo do corpo Vitor (se é que ainda não se transformou), durante o qual foi abrigada a alma, serviu para o progresso desta e para a qual o corpo Vitor, após a passagem, não mais interessou.
Senhor Vitor, até breve.
Quem nunca ouviu falar de alguém que de tudo faz um pouco? Vitor foi esse alguém. Desde menino fascinara-lhe todo e qualquer trabalho que exigisse habilidade manual. Foi engraxate de porta de bar, vendedor de bugigangas nas praças públicas da grande cidade em que morou, foi auxiliar de alfaiate, vendedor de amendoim, de refresco em futebol da várzea, auxiliar de serralheiro, de marceneiro, de costureiros, de sapateiro, de farmácia, entregador de camisas feitas à mão, pastor de cabras, aprendiz de cozinha, carvoeiro, vendedor avulso de roupas, músico, telegrafista, jogador de futebol, coroinha e mariano de Igreja católica, servente de pedreiro e outro tanto de atividades profissionais exerceu, porém o passar do tempo lhe apagou da memória as lembranças.
Orgulhava-se em dizer que nunca lhe faltara dinheiro, embora não pudesse ser considerado abastado ou rico; era pessoa afortunada, mas não de riqueza material. O entusiasmo que ele nutria pela vida o transformara em pessoa feliz, otimista e esperançoso a respeito de qualquer empreitada a que se lançava na vida profissional e na crença de sua formação pessoal. Tinha conhecimento de suas limitações, quanto ao acesso cultural, mas jamais cultivou a possibilidade de fracasso.
Vitor não foi uma criança nota dez nos estudos fundamentais por quais passam aqueles que conseguem acesso ao estudo; mesmo assim não se considerava desprovido de capacidade para conhecimento adequado às suas aspirações não exageradas; no que aspirava ser, aos poucos e com dificuldade, conseguiu êxito.
Uma das primeiras frustrações que, felizmente, não se transformou em recalque, ocorreu no curso ginasial; certo de que não levava a sério o estudo, melhor, no seu entender, abandoná-lo e tentar algo menos exigente. Tinha, naquele tempo, excelente emprego, sem perspectiva de demissão; ao contrário, com perspectiva de estudo a respeito da profissão e promoções futuras, o que efetivamente aconteceu até o momento em que a empresa tradicional, inglesa, encerrou as atividades no Brasil; mas, para Vitor, que já havia chegado ao ápice de sua atividade, o fato não lhe trouxe preocupação, visto como já havia retornado aos estudos, concluído o curso ginasial, completado o curso colegial e com ingresso em tradicional universidade pública, cuja formação então se concluía para que, na qualidade de profissional liberal, iniciasse novo trabalho com ganho razoável para sustento da família.
Certo é que se saia bem em toda e qualquer atividade que iniciava, porque, sem o saber, recebia ajuda espiritual de alguém que com ele se preocupava e o acompanhava nos passos da vida. Vitor sentia que havia alguém, mas não se preocupava em saber mais a respeito. A ele bastava essa crença, o respeito por esse sentimento e a fé de que tudo para ele daria certo. Não sentia inveja de quem fosse melhor do que ele; sentia sim estimulo desafiante para que pudesse chegar ao mesmo patamar de quem pudesse lhe despertar fascinação.
Décadas e décadas passaram e Vitor se saia bem em todas as investidas de progresso, repita-se sem nunca ter sido rico ao ponto de ser afetado na maneira de viver e se afastar de suas origens; ao contrário, as suas origens traziam orgulho e exibia retratos, cartas e outros documentos daqueles momentos que, muitos, por causa do orgulho e vaidade, pretendem esconder.
Certa feita foi tomado de tristeza porque seu filho, menino, desmontou a caixa de engraxate que montara para ganhar uns trocados e onde escrevera, com tinta de sapateiro, em um dos lados o seguinte “CZ 2,00”. Sentia falta daquele objeto que, por certo, serviria de decoração de seu luxuoso gabinete de trabalho, na idade madura. Nunca sentira vergonha de seu dedicado pai que, humilde servidor de café, em uma repartição pública, fotografou-se, sorrindo feliz, segurando um bule, atrás de um balcão, durante certo congresso para o qual fora designado, a fim de servir o famoso “cafezinho” brasileiro.
Aquela fotografia representava um pedaço da vida de Vitor, as gotas de sangue que fluíam em suas veias, a gravação feita na memória a respeito do arrojo profissional do pai que sempre teve mais do que um emprego, tudo em favor da família. Ali estava o herói de Vitor, ali estava seu estímulo e seu orgulho, portanto aquela foto devia ser exibida sem rusga de vergonha, ao contrário como se fora o grande troféu de vida.
Certa feita, Juca, um amigo de infância, já na fase adulta, em coversa com Vitor, no gabinete deste, ao comentar o passado do amigo fez uma revelação que lhe tocou fundo o coração. Disse o amigo que o motivo da grande admiração e respeito por Vitor estava no fato de que ele sempre exibiu, com destaque, a fotografia do pai, sem que este fosse autoridade de renome e sim humilde funcionário servidor de cafezinhos na repartição.
Vitor, na senda da vida, galgou posições invejáveis e conseguiu progresso nas atividades abraçadas, porém, na idade adulta sentiu profunda atração para o estudo de filosofia, graças à influência que recebera de um grande amigo, professor de filosofia, o Dr. Mário Ferreira dos Santos, que conhecera e cuja residência frequentara por muito tempo aprendendo filosofia. O digno e respeitável professor desfrutava de inteligência distinta, autor de muitos livros, ex aluno e professor das melhores faculdades públicas do Estado e tão humilde que permitia ser visitado por quem se interessasse por filosofia no recôndito do lar. Vitor guarda, até hoje, grande acervo das obras daquele inesquecível mestre.
É importante anotar, porque o fato poderá servir de exemplo, que Vitor não alimentava aspirações ou intenções de alçar voos altos, ao contrário procurava participar de grupo que tivesse interesse, dedicação e garra para enfrentar certas tarefas, de qualquer ordem. Interessante, que nessa linha de comportamento, em regra Vitor se destacava e, por causa, do objetivo era indicado para liderança do grupo ou para auxiliar o líder.
Às vezes Vitor se punha a refletir sobre sua vida e não acreditava como as coisas aconteciam naturalmente com ele, se, para outros, eram consideradas difíceis e às vezes impossíveis. Vitor sempre atribuía o sucesso a uma ajuda externa, espiritual, porque, quando cabia a ele pleitear algo, as condições para o pleito se alteravam e se tornavam favoráveis à intenção.
Um exemplo pode ser dado e, apenas um, porque muitos outros existiram. Se Vitor, como sempre fazia, vinha a alimentar um desiderato, por exemplo a indicação para o exercício de certa função, mas, para tanto, a condição era aprovação em um concurso, as regras rígidas do concurso eram alteradas, favoravelmente a Vitor, e, ao depois, retornavam ao estado anterior. Assim Vitor era favorecido, porque conseguia ser aprovado com seu conhecimento compatível com a exigência.
Não foi uma tampouco duas vezes que fatos, que poderiam parecer absurdos, aconteceram; foram muitos e, a cada acontecimento, Vitor preocupava-se mais, não pelo acontecido, mas pela responsabilidade que, tinha a certeza, deveria assumir; não sabia como e quando, porém sabia que algo lhe seria cobrado, não em dinheiro, mas em conduta.
De modo tímido, é verdade, buscou assumir responsabilidade e, à sua maneira, sem formação mística acentuada suficiente para tirá-lo da condição de místico curioso, cuidava de fazer o que, espiritualmente, se chama de caridade, sem ostentação. Sentia uma gota de conforto nos momentos em que, procurado por alguém, conseguia, ainda que com um conselho ou pequena explicação, transmitir alento de alívio.
Contraiu matrimônio, formou família e veio a prole. O casamento não foi ato impensado, ao contrário foi fruto de firme decisão, em idade adulta, para não ter de passar por momentos de arrependimento. É evidente que, a linha de pensar e de agir fez com que o casamento de Vitor durasse muito tempo, sem que deixasse de sentir, pela esposa, o mesmo amor que sentira quando a conhecera.
O quadro até aqui, revelado pessoalmente por Vitor, foi destacado por causa da influência que exerceu na formação dele, sendo certo que caracterizou o modo de vida até a sétima década de vida.
Aos setenta anos de existência, um relâmpago mental aconteceu seguido de trovões assustadores a anunciarem abalo no futuro daquela metódica pessoa; possibilidade de mudança de vida, justamente de quem sempre agira, despreocupadamente, com as provas da vida. Com o susto ficou preocupado, pois se tratava de sensação estranha nunca dantes experimentada.
Mesmo nos momentos de reflexão os relâmpagos não cessavam e a tempestade era esperada; com a expectativa o medo, a sensação de insegurança e o estado de alma de frustração absoluta ocuparam seu estado mental.
Vitor sempre fora um matemático espiritual, ou seja projetava o futuro e acrescentava condicionantes, a fim de formar uma equação cuja solução haveria de ser considerada verdade inexorável.
A bem da verdade, a projeção do futuro de Vitor era feita de modo bastante lógico, sem o que não chegaria a uma conclusão salutar. Se a conclusão era verdadeira ou não pelo menos era lógica; considerando que tudo que é lógico oferece certo conforto espera conclusão da qual pudesse não se arrepender. E essa conclusão era acerca de toda sua vida e, de repente, da ideia de se aproximar do fenômeno morte, algo de que não cogitara antes.
A demonstração científica poderia até contrariar a maneira de pensar de Vitor e fixar a regra de que a morte é inexorável em relação ao ser humano. Vitor, portanto, na condição de ser humano, um dia morreria.
Essa posição científica, contudo não era objeto da preocupação de Vitor; preocupava-lhe o que poderia acontecer após seu desencarne, não com ele, mas com seus familiares. Em assim sendo, antes do evento irreversível, buscara ele o manejo de uma única ferramenta plausível cuja utilização proporcionasse um sentimento de aceitação da morte, mas sentimento lógico.
No uso da ferramenta mental, partiu da seguinte premissa: - O que acontecerá com meus familiares, após minha morte, diante dos problemas financeiros que surgirão imediatamente?
Se essa questão partisse de outrem, provavelmente diriam o que Vitor já tinha ouvido, mais ou menos assim:
- Cada um resolverá por si o seu problema!
– Deus não desampara seus filhos e, bem ou mal, cada um encontrará a solução!
- A preocupação de quem ajuda é diferente da preocupação de quem é ajudado, mas cedo ou tarde este aprenderá a sobreviver!
Por certo nessa linha de explicações seguiriam as justificativas, porém, para Vitor que não sabia se estava certo ou não, a vida se resumia no auxílio dos familiares. Assim pensava Vitor e esse pensamento para ele era um axioma. Anote-se que, sem se pretender formular juízo de valor, parece que esse sempre foi o ponto falho de Vitor, ou seja de fixar algo que pudesse beneficiar o grupo, sem cogitar se o benefício era desejado. No unilateral entendimento dele, Vitor, não havia ponto crítico mas posição da qual não queria se desligar.
Diante da postura de Vitor como ficaria esta indagação: Será que a dádiva, apesar de ser ato de caridade e trazer resultado bom, corresponde ao desejo de quem a recebe, da maneira como foi prestada? Não estaria este a se sentir humilhado?
Vitor se lembrou dos sucessos pessoais ao longo da vida; dos obstáculos que foram transpostos e da posição que galgou e que, de repente, para ele tocaram as trombetas do fim. Viu, com os olhos da alma, a sucessão das cenas da vida, uma após outra como em um filme a exibir toda sua trajetória de sucesso. Não conseguia admitir a possibilidade de, abruptamente, ocorrer solução de continuidade para aquelas cenas da vida. Todas se seguiam, de maneira diferente, mas havia um elo que ligava a anterior à seguinte, estabelecendo uma lógica de progresso pessoal sem intenção de constrangimento em quem quer que fosse.
O pensar de Vitor quanto ao desencarne, era um pensar que contrariava toda a conduta de vida até então por ele adotada; toda a conduta que não sofrera, em momento algum, interrupção. Por essa razão se sentiu frágil ante a possibilidade de solução de continuidade e desfecho terrível. Indagou a si próprio se não travara, ao longo das décadas, uma batalha de Pirro.
Afinal, depois de tanta luta, depois da certeza de que nunca lhe faltara ajuda, não seria crível que aquela ideia significasse a derrota, o findar de tudo o ponto final da existência de Vitor. E mais com reflexos na segurança financeira da família.
Recompôs-se, no amplo depósito espiritual de ideias que guardara para utilização em momentos como o que passava, e engrenou, como sempre o fizera, um plano para o futuro. Mas qual futuro se a velhice o ameaçava, sem dó ou piedade, com imenso furor?
Pensou e pensou muito; concluiu que havia necessidade de dar alguns passos firmes, mesmo que sua tranquilidade material e financeira fosse ameaçada; afinal, a morte seria mesmo o fim dessa tranquilidade, então porque se preocupar com essa situação, se partira da premissa de que o futuro vai além dessa vida material? Além da vida material? Eureka; encontrou a chave do enigma.
O planejamento foi adotado e firmou a seguinte regra para ser seguida: Em primeiro lugar deixar de gastar dinheiro com coisas que, na fase da velhice, não eram tão importantes como antes e, guardar, de preferência uma parte em casa e outra parte em poupança bancária, o que fosse possível.
Não foi difícil essa primeira providência, porquanto a razão lhe proporcionara a convicção de que, na velhice, há vontades pessoais dispensáveis: viagens, troca de veículos, restaurantes caros, roupas de moda onerosas, presentes etc.
Segundo passo, tentar se preocupar mais com o progresso espiritual e ocupar seu tempo na busca de esclarecimentos a respeito de como agir diante do desencarne.
O segundo passo dependia somente da coragem de Vitor, porque subverteria toda a ordem por ele adotada na direção de seus atos até aquele momento de reflexão. De qualquer maneira os dois passos foram dados, a partir do momento em que percebeu que todos os seus projetos dos quais se sucederam as realizações de vida esvaziavam-se; esvaziando-se essas realizações não havia como se admitir a queda das vitórias. Vitor entretanto enxergou, com ajuda da espiritualidade, algo que não pressentira antes, ou seja a mudança que pretendia fazer seria sua grande e derradeira vitória?
Pensou e pensou muito e percebeu algo de bom nos dois passos cogitados. Em primeiro lugar, com as economias guardadas, mais o recebimento de outros valores que seriam efetivados por causa de sua morte, seus familiares disporiam de numerário suficiente para as necessidades no mínimo por um ano; isso se não ocorresse surpresa em face da inflação que surge de tempos em tempos.
Quanto ao segundo passo, percebeu que o conhecimento do porvir é muito mais importante do que toda a vida por qual passara. Considerou essa vida como se fosse uma hospedagem em um hotel de veraneio. Hospedagem temporária, porque necessariamente, por se tratar de veraneio, um dia a pessoa seria obrigada a retornar para casa. Considerou Vitor que ele e todos os seus familiares, todos passariam à condição de hóspedes; logo, hospedes que também, um dia, retornariam para casa.
A partida de um hóspede, mesmo que seja antes de outro, poderá não ser ato agradável para quem permanece no hotel, porque sentirão a falta daquele que foi para casa. No entanto, haverá o lenitivo de que eles, os que ficaram, também um dia retornarão para casa e lá encontrarão quem deixou o hotel antes.
Aos poucos, Vitor tomou consciência de que o retorno para casa era muito mais importante do que a permanência no hotel, porque era em casa que os familiares assumiam responsabilidades. No hotel, ao contrário, tudo era feito de acordo com a vontade de cada um sem compromissos sérios.
Não se soube, porque não foi revelado por Vitor, quanto tempo ficou hospedado no hotel imaginário, ao lado dos familiares, tampouco se revelou de que forma os mesmos familiares permaneceram no hotel.
Algo ficou bem claro. Ao cabo de toda a vida humana de Vitor este conseguira a superação de muitos obstáculos e seguiu, com alguns tropeços, direção adequada para bem chegar no fim da estrada. Embora a trajetória tivesse sido bem traçada, certo é que, não houve final da caminhada, mas feliz parada para preparação, esclarecimentos e ânimo para a verdadeira e outra caminhada para frequência em outras escolas da vida; assim se espera, porque, a partir de então, Vitor vivera sem o corpo físico e, melhor dizendo, a vida não será Vitor, mas a Alma que se alojou em quem recebeu o nome Vitor. A conclusão, portanto, é que a vida continua.
Ora, se a vida continua, em outro plano, em outra dimensão sem um corpo denso a hospedar o espírito, é evidente que há necessidade de preparação para tanto, porque a preparação afasta o temor do desconhecido. Se o desconhecido passar à condição de conhecido, por óbvio não haverá temor. Aliás é de Sócrates a recomendação conhece-te a ti mesmo. A ti mesmo não significa conhecer o corpo hospedeiro da alma, mas conhecer a alma que um dia deixará o corpo.
Uma vez que, supostamente, morte é ausência de vida, os viventes humanos temem-na. Porém esses mesmos viventes não percebem que morte, de fato é negação da vida, mas da vida corporal, da vida carnal não da vida espiritual. O espírito é imortal.
Se temer a morte é temer a cessação da vida biológica, teme-se por algo que não existe, porquanto o corpo físico também não morre; ao contrário transforma-se em outros elementos físicos. Bem pensada a questão o temor é gerado por ação mental desenvolvida pelas condições do organismo físico e psíquico.
Se organismo físico deixar de funcionar, não haverá mais como produzir o temor. E mais, não existe morte do corpo físico, mas transformação elementar das células e tecidos. Veja-se quão sem lógica é o temor pela morte, mormente se se atentar para o fato de que o espírito é imortal e a imortalidade do espírito não aceita a ideia de morte; não a aceitando porque falar em temor da morte do corpo se este também não morre e sim passa por transformação física; Afinal temer o que?
Conforme foi dito, não se sabe o que aconteceu a Vitor, mas certo é que o espírito que ocupou o corpo Vitor permanecerá na condição de imortal.
O curto espaço de tempo do corpo Vitor (se é que ainda não se transformou), durante o qual foi abrigada a alma, serviu para o progresso desta e para a qual o corpo Vitor, após a passagem, não mais interessou.
Senhor Vitor, até breve.