Paulo Coelho: - A ditadura me torturou

Vou transcrever um libelo contra a ditadura miitar escrito pelo escritor brasileiro, Paulo Coelho (um dos autores mais lidos do mundo), texto publicado Washington Post, o mais importante jornal americano. Leiam.

"28 de maio de 1964, um grupo de homens armados invade meu apartamento. Começam a revirar gavetas e armários - não sei o que estão procurando, sou apenas um compositor de rock. Um deles, mais gentil, pede que os acompanhe 'apenas para esclarecer algumas coisas'. O vizinho vê tudo aquilo e avisa minha família, que entra em deespero. Toido mundo sabia o que o Brasil vivia naquele momento, mesmo que nada fosse publicado nos jornais.

"Sou levado para o DOPS, fichado e fotografado. Pergunto o que fiz, ele diz que ali quem faz perguntas são eles. Um tenente me faz umas perguntas tolas, e me deixair embora. Oficialmente não sou mais preso: o governo não é mais responsávelpor mim. Quando saio, o homem que me levara ao DOPS sugere que tomemos um café juntos. Em seguda, escolhe um taxi e abre gentilmente a porta. Entroe peçoque vá até a casa de meus pais - espero que não saibam o que aconteceu.

"No caminho, o taxi é fechado por dois carros; de dentro de um deles sai um homem com uma arma na mão e me puxa para fora. Caio no chão, snto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel diante de mim e penso: 'nao posso morrer tão cedo'. Entro em uma espéciede catatonia: não sinto medo, não sinto nada, Conheço as históriasde outros amigos que desapareceram; sou um desaparecido, e minha última visão será a de um hotel. Ele me levanta, me coloca no chão do seu carro, epedeque eu coloqueum capuz.

"O carro roda por talvez meia hora. Devem estar escolhendo um lugar para m executarem - mas continuo sem sentir nada, estou conformado com meu destino. O carro para. Sou retirado e espancado enquanto ando por aquilo que pareceser um corredor. Grito, mas sei que ninguém está ouvindo, porque eles também estão gritando. Terrorista, dizem. Merecer morrer. Está lutando contra seu país. Vai morrer devagar, mas antes vai sofer muito. Paradoxalmente, meu instinto de sobrevivência começa a retomar aos poucos.

"Sou levado para a sala de torturas, com uma soleira. Tropeço na soleira porque não consigo ver nada: peço que nãoa me empurrem, mas recebo um soco nas costas e caio. Mandam que tire a roupa. Começa o interrogatório com perguntas que não sei responder. Pedem que dealate gente dequem nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jugamágua no chão e colocam algo nosmeus pés, eposso ver pordebaixo do capuz que é uma máquina com eletrodos que são fixados nos meus genitais.

"Entendo que, além das pancadas que não sei de onde vêm (e portanto nçao posso nem sequer contrair o corpo para amortecer o impacto), vou começlar a levar choques. Eu digo que não precisam fazer isso, confesso o que quiser, assino onde mandarem. Mas eles não se contentam. Então, desesperado, começo a arranhar minha pele tirar pedaçosde mim mesmo. Os torturadores devem ter se assustado, quando me veem coberto de sangue, pouco depois me diexam em paz. Dizem que posso tirar o capuz quando ewcutar a porta bater. Tiro o capuz e vejo que estou numa sala a prova de som, com marcas de tiros nas paredes. Por isso a soleira.

"No dia seguinte, oura sessão de tortura, com as mesmas perguntas. Repito que assino o que desajarem, confesso o que quiserem, apenas me digam o que devo confessar. Eles ignoram. epois de nãosei quanto tempo e quantas sessões(o tempono inferno não se conta em horas), batem na porta e pedem para que coloque o capuz. O sujeito me pega pelo braço e diz, constrangido: não é minha culpa. Su levado para aumasala pequena, toda pintada de negro, com ar-condicionado fortíssimo. Apagam a luz. Sóescuridão, frio e uma sirene que toca sem parar. Começo a enlouquecer, a ter visões de cavalos. Bato na porta da 'geladera' (descobri mais tarde que esse era o nome), mas ningupem abre. Desmaio. Acordo e desmaio várias vezes, e em uma delas penso: apanhar é melhor do que ficar aqui dentro.

"Quando acordoestou de novo na sala. Luz sempre acesa, sem poder contar dias e noites. Fico ali o que parece uma eternidade. Anos depois, minha irmã me conta que meus pais não dormiam mais; minha mãe chorava o tempo todo, meu pai se trancou em um mutismo e não falava.

"Já não sou mais interrogado. Orisão solitária. Um beo dia, algupem joga minhas roupas no chãoe pede que eu me vista. Me visto e coloco o capaz. Sou levado até um carro e posto na mala. Giram por um tempo que parece infinito, até que param - vou morer agora? Mandam-me tirar o capze sair da mala. Estou em uma praça com crianças, não sei em que parte do Rio.

"Vu para acasa dos meus pais. Minha mãe envelheceu, meu paidiz que não devo mais sair na rua. Procuro os amigos, procuro o cantor, e ningupem responde os meus telefonemas. Estou só: se fui preso devo ter alguma culpa, devem pensar. É arriscado ser visto ao lado de um preso,. Saí da prisão mas ela me acompanha. Aredenção vem quando duas pessoas que sequer eram próximas de mim me oferecem emprego. Meus ais nuna se recuperaram.

"Décadas depois, os arquivos da ditadura são abertos e meu biógrafo consegue todo o material. Pergunto por que fui preso: uma denúncia, ele diz. Quer saber quem o denunciou? Não quero. Não vai mudar o passado.

"E são essas décadas de chumboque opresidente Jair Bolsonaro - depois de mencionar no Congresso um dos piores torturadores como seu ídolo - quer festejar nesse 31 de março"

P.S. Será que vão pichar Paulo Coelho? Não duvido. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 30/03/2019
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