decifrando a charada

A data era 1973, estávamos no terceiro ano do curso de Geologia da USP. Na disciplina de Paleontologia fizemos uma excursão de estudos para Ponta Grossa, para coleta e análise de fósseis devonianos que são abundantes, e mundialmente famosos, nas rochas do subsolo da cidade.

Quase nada me lembro daquela viagem. Lembro que, graças à presença de um professor que fora do exército, conseguimos pernoite e café da manhã num dos quartéis da cidade, já não me lembro qual. Dormimos num alojamento muito bem arrumado, as camas tinham grossos e verdes cobertores de algodão, apropriados para o frio que fez naquela noite. No café da manhã, iogurte natural e bolos, um dos colegas alunos comentou que aquilo era café da manhã de oficiais, estávamos tendo tratamento especial.

À saída do quartel, após o café da manhã, nosso ônibus, com quarenta estudantes a bordo, foi barrado na guarita da portaria. Após inspeção, constatou-se que faltava um dos cobertores no dormitório. O ônibus não seguiria viagem enquanto o cobertor não aparecesse. E ele logo apareceu, tinha sido “esquecido” dentro da mochila de um dos colegas mais atrevidos. E seguimos viagem.

Mas a recordação forte daquela viagem não foi o episódio do cobertor, nem os fósseis devonianos. Na noite em que pernoitamos na cidade, depois da janta e antes de nos recolhermos ao quartel, num grupo de uns vinte alunos saímos perambulando pelas desertas ruas próximas até encontrarmos um boteco ainda aberto, que servia a cerveja que estávamos a procurar. Depois de algumas cervejas e do emergir da alegria e descontração que um tal encontro desperta, o Saul inventou de organizar um jogo, um desafio para decifrar uma charada. E habilmente organizou os colegas em torno de uma mesa, sobre ela esparramou alguns palitos de fósforos e disse que eles representavam um número de zero a dez. Tínhamos que descobrir qual era o número.

Após algumas tentativas alguém acertava ao acaso, e Saul ia rearranjando os palitos, até que alguém acertava de novo. Rearranjo após rearranjo, Saul revelava-se um artista. Ora aumentava ora diminuía o número de palitos, chegava a ter dezenas ou apenas dois ou três deles arranjados sobre a mesa, redirecionava os palitos, afastava-os, aproximava-os, girava-os, unia ou separava as cabeças inflamáveis, fazia parecer estar exercendo uma complicada arte de cálculo com muitas variáveis, para chegar ao número cifrado no arranjo dos palitos. E os números eram os mais inesperados! E ninguém conseguia descobrir a lógica, os acertos eram casuais, por tentativa e erro.

Até que um dos colegas mais matreiros, o Kalu, descobriu! Saul pediu-lhe que fizesse segredo até que os demais fossem descobrindo, o que de fato foi acontecendo. A última a não decifrar o enigma foi a Cristina Mulata, uma das três meninas na turma onde dominavam os meninos. E isso foi motivo de regozijo geral. Logo ela, uma das mais cdf’s e queridas da turma, e uma menina, foi o alvo de todas as zombarias da noite. E a Mulata estava inconformada, tentara todas as possibilidades lógicas para decifrar o arranjo dos palitos, sem sucesso. Até que desistiu.

O que ela não percebera, na sua honestidade e ingenuidade, é que os palitos eram só um engodo para distrair os desatentos. O número a ser descoberto era na verdade mostrado pelos dedos não recolhidos que as duas mãos do Saul discretamente colocadas sobre a borda da mesa exibiam. Uma maliciosa distração, que valeu-nos uma noite inesquecível naquele boteco que não consegui reencontrar vinte e três anos depois, quando o destino quis que eu viesse fixar residência em Ponta Grossa, então já pai de família e professor.

Mas quando me lembro daquela espirituosa charada do saudoso Saul, não consigo deixar de pensar que, a todo momento, somos ludibriados por digressões menos inocentes. Praticadas pelos nada ingênuos dirigentes desta nossa distorcida sociedade.

Publicado no blog http://perrengasprincesinas.blogspot.com/2016/