Minha última goiaba

Esta noite o céu está carregado, sem estrelas. Me deparei com uma lua inchada e gorda, através da janela, do corredor de acesso aos quartos. Esbanjava simpatia, uma vez que assim iluminada, clareava o que a noite pretendia camuflar. Chique como ela só, se cobriu com as recentes novidades da moda. Abusada, a poderosa, se insinuava em tons neon. Registrei este momento, com o meu celular. Consegui uma bela imagem! Uau! Ela, moderninha, se cobriu em seu melhor estilo, esbanjando sedução.

Estamos às vésperas da "Enchente das Goiabas", também dia de "São José". Este meu santinho protetor, ampara toda minha família. Se hospeda no oratório barroco da sala de visitas, segurando seu "Menino." Sendo eu, uma artesã, me guarda e protege com carinho. A crença ensina, que se hoje chover, será sinal de abundância na colheita. Talvez, o tipo da lua, seja para anunciar a nova estação. Amanhã, será outono. Um novo ciclo que se inicia. Nova paisagem, entre o meu pedaço do pomar e o céu que cobre Araxá.

Amanhece. Vinte de março e ontem não choveu. Visito ao amanhecer os fundos da minha casa, como minha amiga Beatriz fala. No pomar, colho a última goiaba do pé. Um olho nela e o outro no passarinho, assustado a voar. O ladrãozinho acordou faminto e havia bicado a mais bonita. Cada um se defende com as armas que possui. Desequilibrada, a coitada, já bicada ferozmente, acabou por cair em cima do caja-manga-mirim. Apresso o passo. Vejo o pé de limão capeta, alcançando seu limite máximo, (preciso agendar com o sr Wardir, nosso jardineiro, uma poda radical). O limão galego, está vestido de beleza. O queridinho do meu marido, está carregadinho, quase lambendo o chão.

Haviam três figueiras, hoje restam duas, seguidas da mexeriqueira ponkan. Ainda pretendo eliminar a pitangueira pirracenta, que ocupa espaço e não se ocupa com nada. Nasceu, cresceu e se mantém encostada. Quanto a ela, perspectivas já não tenho, não provarei do seu fruto. Quem sabe seu galho engrosse e servirá de suporte, para o ninho da rolinha.

Dei a primeira mordida na goiaba. Hum... Sabor e cheiro impregnaram o ambiente. Fechei os olhos e dei um respiro, profundo, intenso... Nenhuma imperfeição na casca, tudo de primeira qualidade. Examinei seu interior, sua cor e novamente me aventurei. Devagar, bem devagarinho, como canta o nosso Martinho da Vila. Deslizei suas sementes, de um lado ao outro da minha boca, vagarosamente... Aproveitei a lembrança do sambinha, ensaiando uns passos, alongando o corpo e movimentando meus pés. Apreciei o contexto e na goiaba, passei a minha língua. Mastiguei. Lubrifiquei todos os dentes, limpei qualquer resíduo escondido nas bochechas e até no céu da minha boca, fiz faxina. Tudo pronto! Dei minha última dentada, com os olhos fechados e arregalei meus compartimentos viscerais, para aterrissar na minha saudade.

Estávamos agora, em sintonia perfeita. A paisagem e eu, ninguém por perto. Ao fundo, uma cerca-viva pesada, enorme, de árvores densas. Fechada, maciça, só se vê seu verde e o céu acima. Habitat de tucanos, maritacas e pássaros em quantidade. Quando aquí vim morar, sete anos atrás, pude ver até miquinhos, no alto de uma delas. Com certeza, o barulho dos homens os assustaram, como eu, disputando a minha goiaba, com o bem-te-vi.

No meu cotidiano sempre este cenário. A paisagem, os cheiros, os sons e este sabor na minha boca, sacudindo as minhas recordações.

Revisando o que hoje sou, chego a entender um pouco de mim. Juntando as peças do quebra cabeças da minha história, aqui estou, imperfeita e grata.

Na minha imaginação, doces lembranças da cozinha da minha infância. Cestos de bambu, balaios repletos de fartura gostosa. Frutas colhidas e transformadas em magníficos doces na cozinha daquela fazenda.

Hoje, tenho este privilégio. No pomar, do meu aconchego, um pouquinho do que fui. Daquela criança, nos seus primeiros anos de vida. Qual seria a razão desta regalia de tão poucos? O porque ainda não descobri. Talvez nunca saberei... Namastê!

Yara Aguiar Rezende de Paiva

Araxá, 19/ 03/2019