vinganças divinas ii

(este texto dá continuidade às crônicas "Estória da criação" e "Vinganças divinas", todos originalmente escritos em 2016)

Passado algum tempo no Planeta Terra, que nas intemporais plagas celestiais mal teria dado para retomar o fôlego após a última conversa, o fiel ajudante Pedro voltou a procurar o Criador, visivelmente preocupado:

- Mestre, Mestre, definitivamente nosso experimento na Terra parece estar regredindo...

- Calma, Pedro, calma. O que está acontecendo?

- Ora, depois de um final de Século XX com auspiciosos sinais de prosperidade e liberdade, o início do Século XXI voltou a nos trazer sinais preocupantes. Além do incremento de guerras, intolerâncias, atentados e iniquidades pelo mundo, constata-se um contínuo crescimento das chamadas direitas totalitárias, que já levaram a atrocidades, ditaduras...

- Repetem-se os erros, Pedro? A humanidade custa a aprender, já sabíamos disso.

- Mas agora estão passando dos limites, Mestre. No Brasil, aquele nosso país experimento dento do nosso Planeta Terra experimento, está se consumando uma das maiores iniquidades da espécie humana. Lembra-se que, após décadas de ditadura, os chamados anos de chumbo, o país chegou a eleger um homem do povo? E depois uma mulher! E que eles eram governantes que tinham como metas de governo a distribuição de renda, e inclusão social e a soberania do país?

- Claro que lembro, Pedro. Acabamos de conversar sobre isso. Não estou assim tão decrépito! As coisas não andavam bem por lá, até determinamos a epidemia do zika vírus. Piorou?

- Sim, Mestre, está piorando! Além do zika, da dengue e de uma tal febre chikungunya, providenciamos o ressurgir da tal gripe H1N1, mais mortal que nunca. E as iniquidades do país continuam superando todos os absurdos de que se tem notícia.

- Explique-me, Pedro.

- Acontece que a poderosa elite privilegiada do país, a chamada casa grande, uniu-se com a grande mídia e os poderes legislativo e judiciário. E juntos estão transformando uma pretensa luta interna para vencer um mal secular, a corrupção, na luta para derrubar o governo daquela presidenta eleita pelo povo, que queria acabar com a pobreza e o colonialismo no país.

- Ora, Pedro, mas isso me parece bem habitual. Já sabemos que, ao longo da história, as elites não querem mudanças, e reagem com violência às tentativas de diminuição da distância que separa pobres de ricos. E com astúcia. Sempre conseguem iludir uma parte do povo de que estão lutando pelos interesses do país e dos pobres. Que velhacos! E que povo manipulável!

- Mas Mestre, no Brasil estão exagerando. Aquela mulher que se tornou presidenta graças ao apoio de seu antecessor, o presidente operário, está sendo injustiçada e condenada pela elite casa grande, por um parlamento corrupto, uma grande mídia mentirosa e a parcela da população que não consegue discernir as coisas. E logo essa presidenta, que desde jovem foi uma idealista militante pela liberdade e soberania do país, e que por isso foi presa e torturada!

- Temos que ter paciência, Pedro. Já sabemos que a Terra é um planeta que aprende com os erros, que a humanidade precisa colher os frutos amargos de seus desacertos para encontrar o caminho da verdadeira evolução.

- Mas Mestre, vamos deixar as coisas assim como estão? Vim procurá-lo porque nosso Departamento de Compensação de Iniquidades está desorientado, já não sabe o que fazer diante de tantas afrontas. Veja que até circulou pelas redes de besteirol dos humanos que se cercassem o parlamento com um muro, seria o maior presídio do país! E se cobrissem com uma lona, seria o maior circo!

E os dois riram como crianças, algo incomum lá pelas bandas celestiais. Depois olharam-se com jeito de troça e escárnio, os músculos das faces ainda relaxados, os olhos brilhantes de uma aguda e maliciosa vivacidade.

- Creio que desta vez não precisaremos intervir, Pedro. Os acontecimentos vão seguir seu rumo natural. O Brasil já está voltando a ser motivo de espanto e zombaria de todo o mundo, como aconteceu na derrota de 1X7 para a Alemanha. Agora a goleada foi no parlamento. A iniquidade foi quem ganhou de goleada. Mas um dia, Pedro, um dia, o povo, o país, vão envergonhar-se desse episódio de sua história, tão eivado de erros e de infâmias, e de seus desdobramentos. Então vão arrepender-se, e procurar caminhos mais civilizados.

- É, Mestre, civilidade é o que parece estar faltando...

- O valor da civilidade só é reconhecido quando a perdemos. É esta a lição a aprender no momento.

- Que assim seja, Mestre, que assim seja. Então, vamos ver...

E Pedro retirou-se. Sozinho, o Criador tinha o semblante preocupado, as sobrancelhas franzidas. Estariam conduzindo de forma acertada aquela arriscada experiência no Planeta Terra?

Publicado no blog http://perrengasprincesinas.blogspot.com/2016