Renúncia

Enquanto ela prepara excepcionalmente o jantar, aproveito para me presentear com um banho mais demorado, um barbear mais meticuloso, um aparar daqueles pelos indesejáveis e teimosos de que, sobretudo nós homens, quase sempre nos descuidamos. É muito reconfortante um jorro abundante de água quente sobre o corpo cansado, num final de tarde. Prezo muito esse aconchego do lar, essa segurança de ter alguém por perto, ainda que a criticar minhas atitudes e a lembrar-me a todo momento as minhas imperfeições. É isso mesmo, normalmente a sua loquacidade cresce pra cima da minha mudez. “Não saia do banho sem camisa que o tempo está puxado para chuva. Quer pegar um resfriado?”

Quando mencionei a excepcionalidade da sua ação na cozinha é porque preparar o jantar é o afazer mais prazeroso do meu dia, por isso eu o assumo com tanto gosto, mas como hoje ela tinha um prato especial concedi-lhe as rédeas do fogão. Comunico-lhe que vou dar um pulinho no bar pra tomar um vinho amargo, ela faz joia com o polegar esquerdo porque a mão direita mexe a panela.

Esse momento no bar não tem muito a ver com o desejo de tomar algo, o que sempre pode ser feito em casa. É desses pequenos prazeres de que nunca deveríamos nos furtar, como um dedinho de prosa com alguém de que se gosta ou uma boa risada com um velho conhecido a quem Deus deu a graça de estar sempre fazendo graça. Ocorre-me os casos do Professor Ricardo, velho amigo dos tempos de militância na Pastoral da Juventude, a quem não vejo há muitos anos e do vizinho de bairro Luciano Vaz, a quem vejo com certa frequência, faço questão de ter uma piada sempre na agulha para a eventualidade de encontrar um desses dois. Sempre riem escancaradamente quando me veem, mesmo antes que eu lhes apresente o chiste que trago no alforje.

Um dos fregueses do bar faz uma longa exposição das vantagens de estar solteiro depois de haver passado por dois casamentos malsucedidos. Fico no meu canto observando o assunto sem disposição para entrar na roda de conversa uma vez que, caso entre, seguindo a corrente natural do que acredito, terei que nadar contra a piracema. Só fico torcendo para que essa arribação encontre a nascente e possa regressar aos remansos repousantes da vida familiar. Reflito que as pessoas hoje em dia buscam relacionamentos constituídos de barganhas, só são interessantes enquanto se recebe alguma coisa em troca de algo, onde a convivência não se sustenta se não houver um código, ainda que não devidamente formulado entre as partes, dos direitos e deveres de cada um.

Percebo que posso permanecer neste ambiente por horas a escutar essa conversa e nem uma vez ouvirei a palavra renúncia, esse substantivo que nesses tempos em que o bacana é levar vantagem em tudo, nomeia uma atitude garantidora da boa convivência. Abdicar dos direitos em favor do outro é uma das maiores dificuldades do ser humano, por isso os relacionamentos são tão complicados.

Volto à casa com inopinada sensação de paz interior. Recordo os versos de J. G. de Araújo Jorge no belíssimo poema “Solilóquio ao entardecer”, que vem iluminar a minha reflexão:

“Interessante, amor, mas vamos concluindo que a renúncia

é a irmã mais velha da felicidade.

Irmã Renúncia! - E só por ela, chegamos tantas vezes

àquela alegria de saber

quanto nos basta esse pouco que nos transborda das mãos...”

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 29/03/2019
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