vinganças divinas

(este texto foi publicado em 2016, dá continuidade à crônica "estória da criação", postado no RL em 25/03/2019)

Conta-se que o Criador, após criar o Planeta Terra e nele distribuir tendenciosamente os recursos naturais , por muito tempo distraiu-se ocupando-se de criar e cuidar de outros mundos pelo universo sem fim. Um belo dia, lembrou-se daquele iluminado e abençoado planeta azul, e perguntou ao seu fiel ajudante:

- Pedro, e como vai o Planeta Terra?

- Ah, Mestre, está passando por um momento bem complicado...

- Como assim?

- Pois lembra-se que ele foi criado para ser um planeta de aprendizado pelo erro? Lá colocamos benesses indescritíveis, únicas em todo o universo, mas ao mesmo tempo para lá destinamos seres com a bênção da inteligência mas aos quais ainda faltam a moral e a ética?

- Sim, sim... Agora me lembro. Pensávamos que ao juntar esses ingredientes ajudaríamos a evolução daqueles presunçosos e deslumbrados seres. E no que foi que deu?

- Pois quero crer que estejam vivendo uma espécie de adolescência da civilização. Ao mesmo tempo que conquistaram maravilhas tecnológicas, ignoram os limites do respeito para com o próximo, para com o planeta, e até para consigo mesmos! Praticam iniquidades cotidianas, destroçam-se em guerras e em crueldades impensáveis, envenenam o planeta e até o próprio alimento... E eximem-se de qualquer culpa sobre tudo o que fazem. Culpam os governantes que eles mesmos escolhem, e às vezes culpam até nós, seus criadores! Parecem mesmo adolescentes, com o corpo maduro para enfrentar as agruras da vida, mas sem nenhum juízo para orientar as suas já evoluídas aptidões.

- Ora vejam! Mas há salvação para esses seres desnorteados?

- Vamos ver, vamos ver! Estão na adolescência de sua civilização! Se não se perderem embriagando-se nos poderes que descobrem nesta fase, poderão aprender com os próprios erros, e repensar os caminhos para uma civilização mais consciente, mais solidária...

- Lembro-me que ao distribuir as benesses naturais na Terra fizemos questão de concentrá-las naquele imenso país que se chamaria Brasil. E como vai essa nossa experiência?

- Ah, Mestre... É bem uma mostra do que vai pelo mundo todo. Lembra-se que apesar de sua imensidão e das incontáveis bênçãos que lá pusemos, seu povo andava com uma deplorável baixa-estima, a ponto de seus pensadores autoimputarem-se um tal “complexo de vira-lata”?

- Lembro, lembro... Mas fizemos algo a respeito, não foi?

- Sim, aproveitamos atributos daquele ultrajado povo, a ginga e a malícia, e os fizemos campeões mundiais de futebol. Passaram a ser admirados e respeitados em todo o mundo, o que lhes serviu para fortalecer a identidade e melhorar a autoestima.

- E então?

- Então que pouco mais de cinquenta anos depois, este povo, assolado por um ressentimento de origem muito vil, saiu às ruas para protestar contra o campeonato mundial de futebol no país. E o que é pior, na abertura do evento perpetraram a maior grosseria de que se tem notícia na História para com um dirigente legítimo, no caso uma mulher, ofendendo-a chulamente!

- Vixe! Quanto desatino... E como ficou isso?

- Nosso Departamento de Compensação de Iniquidades providenciou uma humilhante derrota de 7X1 para o time que até então tinha sido freguês. O que era um orgulho daquele povo virou sua vergonha. Vamos ver se eles aprendem...

- E estão aprendendo?

- Não sei não... Essas coisas demoram tempo até serem compreendidas e modificarem a postura do povo. Daquele 7X1 até hoje eles têm alimentado um ódio interno, que ora se manifesta nos estádios de futebol, ora se mostra em manifestações de protesto nas ruas, ora se manifesta contra governantes e ideologias. Aquele que era um país de povo pacífico parece que está alimentando um ódio interno, que pode resultar num conflito fratricida, e não numa luta contra alguma ameaça externa.

- Mas que coisa estranha, Pedro. Como é isso?

- Complicado, difícil de explicar. Parece que forças externas ao país ainda praticam aquela velha máxima “dividir para governar”. E o Brasil já ensaiava tornar-se outra grande nação a buscar seu espaço entre os poderosos, mas estes não desejam concorrência. E esses poderosos têm fortes aliados dentro do Brasil, que trabalham incansavelmente para alimentar o ódio interno. E o povo, que não gosta muito de refletir nem de assumir responsabilidades, deixa-se levar.

- O povo é assim, leviano e omisso?

- Pelo menos até agora muitos têm se comportado assim...

O Criador calou-se por um instante, parecia refletir com os imateriais botões de seu manto de luz. Então pronunciou-se:

- Pedro, isso não pode ficar assim! Desta vez vou antecipar-me ao Departamento de Compensação de Iniquidades. Já que parece que aquele povo está demorando muito para aprender a usar as bênçãos do discernimento e da responsabilidade, vamos diminuir-lhes a capacidade de pensar...

- Mas Mestre, como vamos fazer isso sem contrariar a lei da evolução?

- Ora, simples! Já tenho tudo planejado. Um mosquito disseminado pela própria negligência do povo vai transmitir um vírus que vai diminuir o tamanho do cérebro, e com ele a capacidade de pensar! Vamos ver se agora aprendem! E esse vírus vai se chamar Zika...

Postado no blog https://perrengasprincesinas.blogspot.com/2016