Wiliane, um anjo de vestido azul
O Vale do São Francisco se destaca no cenário mundial como um oásis em meio ao deserto do sertão nordestino. Milhares de hectares de plantio irrigados pelas abençoadas águas do Rio São Francisco transformam Petrolina e Juazeiro – principais potências do Vale – em metrópoles do comercio de frutas e vinhos.
Normalmente entre os meses de outubro e novembro, uma das duas cidades se transforma em sede da FENAGRI – Feira Nacional da Agricultura Irrigada. Os estados de Pernambuco e Bahia se revezam para sediarem o evento que recebe pessoas de todo o Brasil e também do exterior, principalmente dos países europeus e americanos. Grandes negócios são fechados em torno da agricultura irrigada e a Feira tornou-se festa no calendário São Franciscano e eixo forte na economia do Vale.
A Fenagri de 2005 aconteceu em Juazeiro, no final do mês de outubro, coincidindo com a I Exposição de Livros dos Autores do Vale – ocorrida em Petrolina, da qual eu participei expondo meus trabalhos. Grandes poetas anônimos e outros nem tão anônimos assim abrilhantaram o evento, e simultâneo a rodada de negócios da Fenagri, fizemos a nossa rodada de poesias e fechamos projetos voltados para a arte literária da região. Muito embora o público da Exposição Literária tenha sido mínimo, concluímos que uma semente foi plantada e quem sabe o fruto seja uma Bienal.
No final da tarde do dia 29 de outubro, Dia do Livro, após fazermos a travessia “Petrolina/Juazeiro” deslizando sobre as águas do nosso querido rio, a pedido de amigos que recebemos em nossa cidade, sentamos em um barzinho para conversar, descontrair e beber uma cerveja gelada, na tentativa de esquecer o calor de 42º que fazia ferver as águas do Velho Chico.
Foi nessa nova rodada de negócios que aconteceu o que mais me chamou a atenção nesse dia. Sentada bem próximo a grade de proteção do Cais de Juazeiro, uma menina prestava atenção em nossas conversas e insistia em não atender ao nosso pedido para que saísse daquele lugar, evitando uma queda. Perguntei onde estava sua mãe e ela respondeu, então a peguei nos braços e levei-a até lá. A mãe sustentava outra criança que, após mamar, dormia em seu colo. Pedi autorização para levar Wiliane – esse é o nome da pequena menina – até a mesa onde estava com os meus amigos, sentei-a numa cadeira ao meu lado e começamos a conversar. Descobri que ela tinha ainda mais dois irmãos que também estavam lá. Disse-me que a mãe os havia trazido para um passeio na Fenagri – estávamos a alguns metros da Feira.
Um dos meus amigos ofereceu-lhe um refrigerante e ela prontamente recusou, mas pude perceber em seus olhinhos que ela não fora sincera em sua recusa, então lhe falhei que poderia aceitar o refrigerante, que não era feio e que não tinha problema algum. Os olhinhos brilhantes de Wiliane disseram sim. Ofereci-lhe batatas fritas e ela aceitou sem pensar em recusar. Da segunda vez ofereci-lhe uma porção maior e ela, ao receber, olhou-me e disse “vou levar para a minha mãe”. Sem esperar aprovação de minha parte levantou sorrindo e correu para o lugar onde sua mãe estava a conversar com um homem que Wiliane disse não conhecer.
Aquela menina tão pequena não faz idéia do que seu gesto foi capaz de causar dentro de mim. Eu tive a sensação de que havia caído em um abismo e sentia minha alma mergulhando em um nada profundo, um nada que ia me consumindo, me devorando. Senti-me tão pequena e insignificante diante do que realmente tem valor nessa vida.
A essa altura, os irmãos de Wiliane já estavam sentados próximos a nossa mesa e foi para eles que ela levou a terceira porção de batatas fritas e o segundo refrigerante que ela aceitou após uma recusa inicial, visto que não havia sido eu quem lhe oferecera.
Precisei segurar as lágrimas que se fizeram em meus olhos. Aquela meninha fechou, com aqueles gestos simples, a maior rodada de negócios que nem a Fenagri e nem a Exposição Literária conseguiram. Aquele coraçãozinho tão pequeno demonstrou uma capacidade imensa de amar e me deu uma das maiores lições de respeito que eu já presenciei.
Wiliane não deve ter mais que cinco anos de idade, mas seu corpo abarca um espírito maduro. Os seus olhos têm uma profundidade que, se olhando nos seus, fará você repensar sobre muita coisa e tenha certeza, sentir-se-á pequeno. Em vez da criancice ela traz consigo a maturidade de uma vida difícil.
Ela estuda e a mãe trabalha como lavadeira de roupas. Disse-me que o pai havia ido embora para a casa da avó, no Ceará, após levar uma queda de um poste elétrico. E todas essas informações ela me passou olhando nos meus olhos, um olhar seguro de quem sabe que a vida não é só uma brincadeira de criança, pelo menos não para ela.
Wiliane é um anjo, uma criança linda, e para mim, ela representou muito mais do que os milhões que fomentaram a nossa economia naquele final de semana, ou as inúmeras letras que estremeceram a alma daqueles poetas. Wiliane representou a vida. Wiliane representou o Brasil numa pintura viva e real.