ADEUS ÀS ÁGUAS DE MARÇO

Já amainam as temíveis águas de março. E São Paulo sofreu e sobreviveu, mais uma vez, à suas fúrias. Fúrias conhecidas desde tempos imemoriais, desde que, no século XVI, da recém-fundada vila de Piratininga, o padre Anchieta descreve numa carta, uma grande tempestade que, durante duas horas, castigou a vila, arrasou choupanas, provocou inundações. Se pularmos no tempo, pensando que as fúrias continuaram a açoitar a cidade, vamos encontrar um quadro famoso de Benedito Calixto, de 1892, cujo título é “a grande inundação da várzea do Carmo”. E o século XX teve inúmeros casos de “a maior inundação”, basta buscar nos arquivos da imprensa ou mesmo no famoso google.

Com as águas do verão, fechadas agora pelas fúrias de março, centenas, talvez milhares de árvores caíram, vítimas, algumas, de raios, e a maior parte, vítimas da própria chuva. Também um fenômeno que se tem repetido insistentemente. E reclama a população da falta de “manutenção”, ou seja, de poda, das pobres árvores. E é sobre essas árvores – vítimas tanto quanto nós, seres humanos, não só das fúrias das águas, mas principalmente vítimas do nosso descaso para com elas que eu quero escrever. E descaso, aqui, não tem, absolutamente, nada a ver com podas muitas vezes radicais e assassinas, realizadas em prol de uma pretensa segurança ou da rede pública de fios ou de carros e casas próximos a elas.

Árvores são seres vivos. E, mais do que seres vivos, são seres garantidores de vida, de melhoria do ar que respiramos; garantidores da qualidade de vida que desejamos; garantidores de nosso bem-estar, ao amenizar os efeitos de temperaturas excessivas, decorrentes da poluição causada pelo ser humano. E como seres vivos devem ser tratadas, as árvores. Devem ser cuidadas para que tenham um desenvolvimento sadio e cresçam e envelheçam sem pragas e com segurança. No entanto, não é exatamente isso o que vemos. O departamento de parques e jardins da prefeitura de São Paulo permite que as árvores plantadas em nossas ruas e avenidas sejam extremamente maltratadas. Isso quando os próprios funcionários não as podam de forma radical e sem critério, expondo seus troncos às intempéries e ao sol escaldante.

O mais grave: permitem que cimentem ao redor de seus troncos de tal forma que praticamente nenhuma água penetre no solo para alimentar suas raízes. Eu acredito firmemente que essa seja uma das principais razões para a grande quantidade de quedas de árvores na cidade de São Paulo. Uma árvore de grande porte, sufocada pelo cimento ao redor de seu tronco, verá suas raízes diminuírem e secarem no interior do solo, ou não se desenvolverem de forma profunda e adequada à sustentação do tronco, dos galhos e das folhas, na superfície, o que, certamente, irá provocar sua queda, quando a água da chuva encharca seus galhos e folhas e os ventos fortes que acompanham as tempestades encontram uma estrutura frágil, que facilmente desaba sobre casas e carros, provocando prejuízos e a ira de uma população que não percebe ser ela mesma a causa de suas tragédias.

Podem observar: a maioria das árvores que caem nas ruas e avenidas estavam sufocadas pelo calçamento ao redor de seus troncos. É claro que há outras razões para quedas de árvores durante uma tempestade, mas acredito ser esse um dos motivos principais, algo que poderia ter solução de médio e longo prazo com medidas razoavelmente simples: basta que se alarguem, nas calçadas, o espaço descoberto, sem cimento, sem calçamento, em torno das árvores, para que elas possam receber água em suas raízes que, fortalecendo-se, consigam, na maioria dos casos, sustentar a copa exterior.

E preciso dizer mais uma coisa importante aos concidadãos dessa megalópole: cuidem das árvores, como cuidam de suas vidas, de suas calçadas, de suas casas. Folhas de árvore no chão não é sujeira, é coisa que uma vassoura e um saquinho de supermercado resolve. Sujeira é cocô de cachorro nas calçadas, quando os donos nãos os recolhem; sujeira é os bares despejaram nas calçadas e nas ruas a água servida da lavagem diária de seus estabelecimentos (e isso é proibido por lei!); sujeira é a ainda absurda existência de estabelecimentos comerciais que não têm ligação de esgoto e soltarem seus dejetos imundos em plena rua, misturados à água da chuva, para disfarçar (e, acreditem, isso ainda existe, sim!); sujeira é jogarem ao chão o lixo de seu consumo diário e constante, desde palitos de picolé até sacos de supermercado e garrafas pet.

Concluindo: árvores não sujam ruas, árvores bem cuidadas não caem à toa, árvores ajudam-nos a respirar melhor, árvores melhoram o clima. Cuidemos de nossas árvores, plantemo-las por toda a cidade, sem medo, deixemos um pouco de solo descoberto em nossos quintais e até mesmo em condomínios, não impermeabilizemos totalmente nossas ruas, deixemos espaço sem cimento ao redor das árvores nas calçadas, que a natureza devolverá o nosso cuidado com uma bem melhor qualidade de vida. E quando dermos adeus às águas de março dos próximos anos, possamos fazê-lo sem precisar contabilizar tantos prejuízos.

2.3.2019

VENENO DE COBRA XXI – 2019

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