o lixo e o prolixo

Chamamos de lixo tudo aquilo que produzimos como resíduos que não têm mais serventia, nos nossos lares, nas indústrias, na manutenção de ruas e praças, etc. Muitos têm chamado a atenção para a inadequação da palavra “lixo”, que subentende algo sem valor, inaproveitável. Na verdade, a maior parte do que chamamos de lixo é reaproveitável e tem valor. O lixo nos dá uma grande lição de como nós, seres humanos, somos preconceituosos, conservadores e predadores. É difícil aceitar que restos de comida possam virar adubo para produzir nova comida, de que papel usado possa virar embalagem ou nova folha de papel a ser escrita... A transformação do lixo em novos produtos, úteis, valiosos, é uma lição de como na vida as coisas acontecem de forma tão mutável, que muitas vezes escapa à nossa compreensão, à nossa previsão.

Foi necessário que, nestes tempos de grande consumo e desperdício de bens, o exagerado volume de lixo produzido começasse a nos ameaçar para que começássemos a nos dar conta de quanto lixo que não é lixo produzimos, de quanto desperdiçamos, de quanto podemos, e devemos, reaproveitar. Começamos a nos dar conta do milagre da transformação do lixo em utilidades. E também começamos a nos dar conta de que produzimos resíduos demais. As fontes de recursos naturais são finitas, e temos que disciplinar seu uso, o lançamento dos resíduos no ambiente gera impactos nas águas, no solo, no ar e na saúde das pessoas e outros seres vivos.

E começamos a nos dar conta de que os ciclos produtivos, que extraem recursos naturais, produzem utilidades, geram e lançam resíduos no ambiente, são ciclos perversos, injustos. Algumas pessoas utilizam muitos recursos, e geram muito lixo. Outras sobrevivem graças a esse lixo, muitas vezes em condições desumanas. E atualmente nos damos conta dessas disparidades, e há crescente preocupação em reduzir as diferenças sociais e diminuir os impactos ambientais, lições dadas pelo lixo. E essas lições não nos foram dadas gratuitamente. Na região de Campinas, em São Paulo, por exemplo, após lançar efluentes industriais por anos num aterro à época considerado seguro, descobriu-se que eles contaminaram as águas do subsolo utilizadas por poços artesianos, e hoje a concessionária do aterro e as usuárias são obrigadas a pagar pela recuperação ambiental e por compensações de danos.

Assim, o lixo, objeto da nossa repulsa, acaba por nos ensinar a sermos mais responsáveis, mais conscientes das consequências de nossos atos, do nosso papel social. Não é mais possível, para as pessoas que já adquiriram alguma responsabilidade, continuar participando irrefletidamente de um mundo de consumismo e injustiça social, onde o poder econômico, em nome do lucro, explora, exclui e polui, e nessa trajetória rapinante em benefício do proveito privado coloca em risco bens coletivos, como os recursos naturais e o meio ambiente. Graças a lições como as dadas pelo lixo, hoje existem leis, normas e tecnologia para que a produção, a reciclagem e a disposição final do lixo sejam feitas da forma o menos impactante possível, do ponto de vista social, ambiental, econômico...

Os aterros sanitários são uma decorrência das lições do lixo; são projetados para ser uma solução adequada, nos aspectos social, ambiental, econômico,... Assumem, assim, a característica de equipamento público, de interesse de toda a comunidade. Um aterro bem concebido deve significar um empreendimento viável economicamente e ambientalmente seguro, deve trazer benefícios sociais e deve representar o consenso da comunidade a que vai servir. Isto é previsto inclusive na legislação, que estabelece a necessidade de audiências públicas no processo de implantação de novos aterros.

Infelizmente, na prática as lições que estão na retaguarda das novas exigências legais, como é o caso do lixo e dos aterros sanitários, são esquecidas quando o interesse econômico prevalece no momento da decisão. Nesse momento, regra geral no mundo que vivemos, o poder econômico associa-se ao poder de expressão no uso, reuso, abuso das palavras, o tema lixo perde todo seu caráter instrutivo, assume o caráter prolixo, repetitivo, porém vazio de conteúdo, de razões verdadeiras.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).