o velho das latrinas (ou "a velhice roubada")

Sempre viajava por aquelas bandas, e lá havia aquela parada providencial onde todos aproveitavam para aliviar-se nos banheiros, antes das comidas e bebidas no restaurante do posto da beira de estrada.

E lá dentro do banheiro, perto da porta, quase sempre estava aquele velho de cabelos brancos, descarnado, rosto quase inexpressivo, mas de certa brandura, sentado junto a uma bancada onde havia uma pilha de toalhas de papel ao lado de uma caixa de sapatos vazia, só com algumas poucas moedas e às vezes alguma nota das de menor valor. E o velho seguia os homens com olhos meigos e argutos, parecia-me querer usar da sua condição para subtrair-lhes ainda alguma coisa além das moedas.

No início, irritava-me a presença do velho. Será que ele não teria algo mais útil a fazer do que passar seus dias ali naquele desventurado lugar, ao lado das latrinas, observando os homens se aliviarem e aproveitando para sugerir-lhes um pagamento adicional por algo que me parecia já iria ser pago lá nas despesas da lanchonete? Recusava-me a aceitar uma de suas toalhas e a deixar-lhe alguma moeda.

Depois de anos de viagens por aquelas paragens, pouco a pouco o velho deixou de incomodar-me. Acostumei-me com o que me parecia ser a sua depressiva, mas inofensiva figura.

Então, numa das viagens, o velho lá não estava, e percebi que eu me afeiçoara a ele e sentia falta de sua presença no posto de tantos anos. A falta da branda e inquiridora figura do velho revelou-se um enorme vazio, uma pergunta capital, sem resposta. Esta dúvida, ela sim, me incomodava.

Reconfortei-me quando voltei a encontrá-lo, numa outra viagem. Minha aversão de antes deu lugar a uma sincera troca de sorrisos, e pela primeira vez deixei uma moeda na caixa de sapatos. E naquele dia, pelo resto da viagem acompanhou-me uma estranha sensação de cumplicidade e simpatia por aquele velho, cuja figura, que agora me parecia serena e amistosa, não me saía da lembrança.

E nas paradas das viagens seguintes passei a trocar rápidos, mas intensos, olhares com o velho. Ainda me demorei um tempo até entender que ele me falava com os olhos. Primeiro, contou-me que estava muito feliz por eu não mais vê-lo como um velho inútil a quem evitar, e por conseguir começar a olhá-lo nos olhos e a entender o que eles diziam.

Depois, questionou-me se o aviltamento e a aparente inutilidade dos velhos não poderiam ser só fruto da nossa intolerância e ingrata incompreensão com o legado e a sabedoria da velhice. Que nossa soberba e nosso egoísmo, tão cultuados nos dias de hoje, rejeitam reconhecer.

Depois, contou-me que na verdade não tinha precisão das moedas, e que as dava para os conhecidos mais necessitados daquelas paragens. E que se divertia examinando o comportamento dos homens no banheiro. Num momento apurados, noutro aliviados, alguns que o ignoravam, outros que o evitavam, embaraçados, outros que, ainda incomodados, contrariados depositavam uma moeda na caixa, e enfim alguns poucos que chegavam a olhá-lo nos olhos. Com todos eles parecia vigorar um acordo de mudez que não precisava ser declarado, pois já nos parece a todos que o velho das latrinas tenha mesmo que ser mudo.

Por fim, numa das últimas vezes que por lá passei, o velho segredou-me que na verdade era um enviado, cuja missão era permanecer ali, desafiando a tolerância e a compreensão dos homens, fazendo-os cismar, entender e, finalmente, mudar. Tal como fizera comigo. Ele me ensinara o respeito à velhice e à humildade, tão desusados nestes nossos tempos desumanizados.

Ainda passei por lá outras vezes, nunca mais encontrei o velho. Seu rosto parece-me uma enorme ausência, a demandar algum tipo de preenchimento, com o qual não chego a atinar. Onde andará ele?

E pergunto-me se o velho teria cumprido sua missão e partido, e se teria sido visto, da mesma forma que eu o vira, também pelos outros usuários das latrinas.

Mas não ouso perguntar a ninguém. Guardo comigo, em silêncio, sua lembrança e seu ensinamento.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).