o prefeito gari (uma ficção verossímil)

Naquela cidade do interior do estado do sul, aliás como em todo o País, a política, e os políticos, andavam bem desacreditados pelo povo. Andavam mesmo até ridicularizados. Talvez, no País, o apogeu da ridicularização acontecera com a maciça votação daquele conhecido palhaço nas últimas eleições, no estado vizinho. Os eleitores do palhaço pareciam estar querendo dizer aos políticos que os viam todos como palhaços, então que estivesse entre eles o mais famoso deles naquele momento. Ou então que, na democracia representativa que viviam, o representante do povo devesse ser um notório palhaço, pois era assim que o povo sentia que os olhos dos políticos o via.

E os fatos recentes, tanto na cidade quanto no País, só faziam agravar o descrédito. Nos legislativos, denúncias de corrupção não devidamente apuradas, legislações em causa própria (tais como no aumento indecente de salários, mordomias e orçamentos internos, aumento injustificado do número de legisladores, etc.), atrelamento a interesses econômicos e políticos poderosos e inescrupulosos, descaso com reclamos autênticos da população... E, sobretudo, uma carência aguda do que antes se costumava chamar de espírito público: a qualidade daqueles políticos capazes de aliar caráter, honestidade, dignidade, coragem e astúcia para enfrentar os onipresentes sabotadores das transformações sociais; lucidez para saber escolher seus colaboradores diretos; visão para discernir as prioridades de ações ao seu alcance; e, finalmente, o dom supremo de conseguir colocar o interesse coletivo, da população, acima dos interesses pessoais.

O poder executivo local não era diferente. Cometiam-se as mesmas lastimáveis perversões políticas, e outras piores. Denúncias, nunca comprovadas, de falcatruas nos contratos com as empresas prestadoras de onerosos serviços públicos, descarada manipulação do legislativo e de conselhos municipais, serviços públicos essenciais sofríveis, como saúde, transporte coletivo, coleta e destinação do lixo, sistema viário e trânsito, abandono de equipamentos públicos à depredação de vândalos, como os parques da cidade, que haviam sido equipados com o dinheiro da população...

Aproximavam-se as eleições para prefeitos no País. Na cidade, começaram a ser cogitados os nomes dos novos candidatos, todos com carreira política no currículo. O radialista que já quase se elegera, o empresário da associação comercial, o professor que nunca escondera a ambição política, o deputado estadual ligado aos grandes proprietários de terras, o experiente vereador... Curiosamente, não puderam candidatar-se dois conhecidos políticos da cidade, suas candidaturas seriam impugnadas por pendências legais ainda não resolvidas.

As candidaturas começaram a consolidar-se, todos os candidatos eram cidadãos de terno e gravata, bem falantes, já conhecidos da população. Então, uma novidade, a princípio quase desapercebida. Um dos candidatos, de um partido nanico, de sigla desconhecida, começou a aparecer, nos eventos, nas notícias, não de terno nem com aquela fala costumeira. Mas vestia um uniforme laranja de varredor de ruas, portava boné e uma risível vassoura larga de piaçava de varrer sarjetas. E dizia que vinha preparado para varrer o lixo em que se transformara a política.

Foi por muitos achincalhado, diziam ser um aventureiro sem nenhum preparo para um cargo público. Acusaram-no de oportunista, plagiador do palhaço que surpreendera nas eleições no estado vizinho. Cautelosos, alguns mais antigos lembraram que a ideia já fora bem sucedida no tempo do meteórico político populista que chegou a presidente da república, com o mote “Varre, varre vassourinha...”, nos anos 1960, pouco antes do golpe militar no País.

Nas aparições públicas e nos debates, quando o questionavam com as armadilhas destinadas a flagrar sua incapacidade para o cargo público, respondia com simplicidade e segurança: -- “não sei, mas aprendo; não sou político, por isso sou candidato; a política que está aí fracassou; o que posso prometer aos meus eleitores é o sincero desejo de recuperar a imagem de limpeza para a política; quem acha que chegou a hora de experimentar algo diferente, vote em mim; vamos mudar!”.

Aos poucos, o fenômeno alastrou-se. Os descontentes tinham agora um candidato que encarnava suas insatisfações e suas esperanças de mudança. O homem simples, vestido de laranja, saído sabe-se lá de onde, mas que falava com firmeza e convicção, foi ganhando notoriedade. Os adversários bem que procuraram, ninguém achou algo que o desacreditasse, talvez um deslize sombrio em sua vida passada. Ele era uma incógnita. Escarafuncharam sua vida pregressa, nada encontraram.

O mote “vamos mudar” alastrou-se como uma epidemia. E o homem ganhou a eleição. Ele não sabia, seus eleitores não sabiam, começava ali uma revolução na política do País.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).