carta a eu adulta

Olá eu adulta. Deixe eu me apresentar, sou Letícia, nem tenho ainda cinco anos. Sou você, ainda pequena. Você é quem eu serei quando crescer, se crescer. Envio-lhe esta carta pra lhe fazer alguns pedidos. É pra você lê-la só quando tiver vinte anos. Antes não!

Vivo na Cidade dos Meninos, uma instituição pra meninos até quatorze anos sem família da cidade de Ponta Grossa, no interior do Paraná. Na verdade, é um sítio com muitas árvores e até horta e plantações, a vinte quilômetros da cidade. Tem sede, oficinas e oito casas, em cada uma delas vivem oito meninos com um casal de pais sociais que cuida deles. Estes pais são funcionários da Prefeitura, contratados pra esta finalidade. Não são pais de verdade, recebem um salário quase miserável, a maioria está ali por falta de outro emprego e outro ganho. Quase todos esses pais tiveram antes uma existência tão difícil quanto estas agora vividas pelos meninos de quem cuidam, que vieram de famílias destroçadas por muitas razões diferentes.

Os meninos, ah, eles estão aqui trazidos pelo Conselho Tutelar da cidade, que os recolhe perambulando pelas ruas, ou após denúncias de vizinhos, de drogas, embriaguez, trabalho infantil, maus tratos por parte dos pais verdadeiros. Ou, na falta destes, dos tutores, o que é o caso mais comum.

Sou filha de um casal de pais sociais e, por esse motivo, embora menina, vivo na Cidade dos Meninos. Muitos acham que este não é um lugar pra uma menina crescer, mas não me importo. Ainda não tenho idade pra pensar muito em meu futuro, ainda não sei o que quero ser quando crescer. Ainda nem vou à escola da vila de Guaragi, que fica aqui perto, aonde vão os meninos em idade escolar. Mas tenho aprendido muito vivendo no meio de tantos meninos, o que me parece que tem sido uma escola melhor que qualquer outra.

Sou muito pequenina, mesmo pra uma menina de menos de cinco anos. Mas sou respeitada pelos meninos. Os menores, que têm pouco mais que minha idade, são os que me dão mais trabalho, estão por aqui há menos tempo, ainda não me conhecem bem, ainda não atinaram como são as coisas por aqui. Quando me provocam, o que sempre acontece, encaro-os com bastante seriedade, mas sem raiva, e na maioria das vezes isso basta pra endireitá-los. Mas se eles não se comportam, começo a falar alto que estão agindo como moleques, que me respeitem, e se for preciso grito, e mordo.

Mas não sou de briga, sou de muita paz. E gosto muito dos adultos, e dos meninos mais velhos, a quem trato como pais. Tenho-lhes sempre sorrisos e abraços muito carinhosos e espontâneos, por isso eles também gostam muito de mim, e ajudam-me a me proteger dos menores, quando é preciso. Os adultos dizem que tenho o dom da alegria e da simpatia. E que por ser assim carinhosa, mesmo que sem o querer, sem o saber, conquisto a todos. Os meninos maiores nem sabem dizer o porquê, mas também gostam muito de mim, e sinto-me protegida por eles.

E assim vou levando minha vida de menina na Cidade dos Meninos. Até quando? Não sei. Quando crescer mais um pouco, quando começar a ir à escola, e depois, dizem que não vou mais poder viver no meio dos meninos. Pra onde irão meus pais, ou pra onde irei eu? Acho que ainda não quero pensar nisso, pra mim o tempo que ainda falta é uma eternidade. Mas espero que eu possa sempre ter pais que cuidem de mim enquanto ainda for menina. E, se possível, que tenhamos uma casa pra morar, e se não for demais, que eu possa ir à escola e ter uma profissão que me faça ser alguém que possa cuidar de mim mesma. Isso é o que mais quero. E quem sabe um dia possa ter minha própria família, minha própria casa.

Nem sei bem por que estou a lhe enviar esta carta, a lhe contar de sua existência quando pequena, com menos de cinco anos, e os desejos da menina que você foi, assim ainda tão pequena. Mas desconfio que seja porque suspeito que lá no fundo de todos os adultos, mesmo você, que sou eu aí, amanhã, há uma criança de cinco anos, menino ou menina, que ainda está na expectativa de como vai ser sua vida. Como eu agora. E eu acho que talvez possa dividir com você, e com os adultos, estes meus desejos de criança. Pois a vida, daqui de onde estou, parece-me muito cheia de incertezas e até mesmo de perdas, de tristezas, de sonhos que nunca serão alcançados.

Criança que sou, ainda nem tenho sabença de tudo isso. O jeito, então, é continuar vivendo esta vida de menina, com o coração de criança, os sorrisos e abraços espontâneos e o carinho que contagia e conquista os que vivem comigo. E a esperança que a vida me conceda as coisas tão simples que me permitam um futuro digno. Espero que você, aí no seu tempo, tenha conseguido estas coisas. E espero que nunca me deixe morrer dentro de você.

Receba um abraço carinhoso desta sua criança, quem sabe eu esteja abraçando também o que resta de mim escondida bem aí no fundo de você mesma.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).