Recado no espelho
A chuva perde intensidade e os vidros da janela da enfermaria escorrem embaçados e aquecidos pelas respirações poucas e suaves que se misturam. Na pequena mesa ao lado da minha cama, dois livros traduzidos de Sylvia Plath, papéis, canetas e meu antigo diário. Três dias passaram-se após o acidente vascular cerebral que sofri e das quatro pessoas que compartilhavam comigo o claro e úmido ambiente hospitalar, duas já receberam alta. Eu, permaneço.
Não lembro das pessoas que me visitam. Nem dos rostos daqueles se apresentaram como parentes e permanecem por horas ao meu lado. Nenhuma voz é familiar. Sei apenas do que me contam: as histórias entrecortadas misturadas à outras, e das presenças agitadas que me rodeiam com narrativas, cuidados e preocupação genuína.
Durante os momentos como este em que sirvo-me somente da companhia da leitura e da chuva enquanto os companheiros de quarto dormem, sinto que a memória respira. A poesia reaviva meus gostos e aos poucos sinto o que fui e o que gostaria de ter sido. O diário me faz experimentar situações já vividas como se ocorressem no momento presente. Minha memória é lentamente reescrita em uma antiga máquina de escrever.
Sob a égide dos sacrifícios diários para a criação do filho único, do marido presente e de uma fé segura, sentimentos presentes em cada linha construída pela caligrafia forte e iluminada pelo brilho da chuva insistente, ergo os olhos para a janela e sou capaz de sentir o gosto do chuvisco nos lábios.Vejo então uma mulher andando rapidamente com uma criança nos braços, esforçando-se para protegê-la da chuva.
Passo assim as mãos sobre as últimas folhas do diário, ainda em branco, como minhas lembranças em reconstrução. Sylvia é minha única testemunha e companheira nesse nebuloso caminho em busca de mim mesma. Essas folhas em branco se apresentam como uma possibilidade e esperam por meus dedos tímidos e sorridentes que há muito não esbanjam afetos e medos nas entrelinhas do que é exposto através do azul brilhante da caneta.
A memória e o pensamento buscam-se até perceberem que sempre estiveram de mãos dadas. Não lembro do que fui, mas minha essência emerge. A leitura põe-me diante de um espelho e me traz de volta a mim mesma. O caminho começou a ser percorrido e já me vislumbro. Reconheço sabores, preferências e valores. Fecho a janela, o diário, os olhos, e assim descanso.
O celular sinaliza que a próxima visita está a caminho trazendo consigo meus escritos antigos e um livro comprado por mim pouco antes do diálogo inesperado com a fragilidade na saúde. Darei assim mais um passo em direção as peças que me constroem e revelam. Sabendo que estou perto, meu coração sossega.