a colher de pau

Na cozinha de minha casa, no bairro de Vila Estrela, em Ponta Grossa, as colheres de pau ficam todas dentro de um recipiente feito de um pedaço de bambu gigante, sobre uma bancada de granito. Bem à vista e à mão. É uma bela visão, a madeira de plantas que já se foram continua sendo útil, servindo naquela que é a parte mais viva e essencial da casa.

No nó de bambu há colheres grandes e pequenas, finas e largas, compridas e curtas, a madeira ora é escura ora clara. E dentre elas há uma colher pequena, mas robusta. Com certeza antiga, talvez a mais antiga. Isso logo se deduz, de um relance, pois ela está com a parte da concha gasta pela metade. De tanto que já foi usada para mexer. Doces, cozidos, refogados, infusões, mingaus, papas e até mesmo a água açucarada para os sustos e os colibris. Gastou-se no fundo da panela, de tanto girar, de tanto misturar, de tanto raspar, de tanto buscar o ponto certo. Às vezes, de tanto extravasar o devaneio da cozinheira, distraída, perambulando seus deslumbres em arrodeios muito longe da cozinha.

E a pequena colher traz no que resta de concha e no cabo marcas escuras de carvão. Apesar de imprescindível, não escapou de ser algumas vezes esquecida perto demais do fogo. Parece que este, um tanto enciumado no mérito do preparo dos alimentos e das apetitosas iguarias, não a poupou de seus vingativos ardores.

E no estreitar do cabo, perto da concha, um desgaste assimétrico, de um só lado. De tanto a colher ser batida no bordo da panela. Sinais que revelam que, além de muito girar e raspar, ela também sofreu muitas pancadas em beiradas bem mais rígidas que ela. As cozinheiras e cozinheiros desta cozinha parecem não gostar de deixar sobras a serem levadas para a pia. Então, pobre colher, dá-lhe pancadas ao final do trabalho.

Estranhamente, à pequena colher, diminuída em tamanho perante as outras bem maiores que compartilham o mesmo recipiente de bambu, assomam-lhe ares que parecem ser da venerável decana daquela cozinha. Pois foi ela quem mexeu as mamadeiras e mingaus das crianças, que agora já são jovens adultos ganhando o mundo. Sua idade parece superar a de todos os outros utensílios por ali à vista. Ela talvez possa se gabar de ser a única que mexeu mamadeiras e papas, depois a farinha para fazer a cola das pipas e balões, o doce de leite, os cozidos e refogados alimento do dia a dia, e hoje mistura as folhas da infusão para o chá de ervas para as horas de cansaço e padecimento dos mais velhos.

E que dignidade lhe dão os evidentes sinais de desgaste! Foi útil, muitas vezes. E ainda agora, é preferida no momento de se escolher uma colher para um novo preparo. Deve ser pelo fato de inspirar confiança. Sua desgastada velhice lhe confere ares de lealdade, virtuosismo, paciência, sabedoria.

Pudera o mesmo reconhecimento fosse dispensado aos anciões que carregam marcas comparáveis.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).