canário-da-terra

Bichinho singular esse canário-da-terra. Ele tem me feito pensar sobre a natureza dos bichos, entre eles esse outro, igualmente único, bicho-homem. Do bicho-mulher, então, deste nem me atrevo a cismar.

Há muito tempo, meu pai, quando eu era criança, iniciou-me na estima a esses bichinhos emplumados e cantadores. Não os de gaiola, mas os soltos pelos matos das periferias de São Paulo, onde morávamos então. Ele me explicava que, tal como os tico-ticos, os canarinhos eram os verdadeiros brasileiros, nativos. E que com o tempo foram sendo acuados pelos cosmopolitas pardais, que os portugueses, saudosos de sua terra, tinham para cá trazido. E meu pai mostrava-me a crista e o papo vermelho dos canarinhos machos, o amarelo esmaecido e delicado das fêmeas. E como eles viviam em grupos, famílias que alegravam com o colorido, o alarido, os chilreios, os lugares que frequentavam.

E depois, ao longo de minha existência, os canarinhos foram revelando-me se não manias, particularidades, idiossincrasias que os distinguiam. Não consigo vê-los nas partes mais centrais da cidade, agora em Ponta Grossa, onde passei a viver. Ainda que lhes coloque sempre quirera, que é devorada pelos pardais, juritis, rolinhas e até mesmo joões-de-barro e sabiás. Mas nos bairros mais periféricos, onde há muito mato aberto, campos com capim que lhes faculta suas sementes, lá estão eles sempre. E ao mesmo tempo que muito graciosos e sonoros, também sabem bem se defender de outras aves comedoras de grãos.

Pude constatar isso quando comecei a colocar-lhes quirera enquanto praticava meus exercícios matinais no Campus Uvaranas, e assim podia observá-los por bastante tempo. A quirera esparramada logo era visitada, primeiro pelos pardais, depois as juritis e rolinhas, depois os tico-ticos e algum joão-de-barro mais ousado. E estes pássaros viviam a meter-se em disputas hierárquicas, uns fazendo os outros correrem, enquanto outros ainda, mais espertos, evitavam os entreveros e concentravam-se em ciscar a quirera. Era muito comum ver juritis intimidando juritis e rolinhas, rolinhas intimidando rolinhas, as pombas, sempre numerosas, intimidando os solitários joões-de-barro, e os canários machos, coloridos, intimidando outros machos e as fêmeas.

No princípio, notei que parecia que os pássaros maiores não implicavam com os canários, e vice-versa. Mas um dia ocorreu de uma juriti, que se pretendia dona do terreiro de quirera, e a todos os pássaros ao seu alcance afugentava, ver-se só com toda aquela quirera espalhada. Até que pousou ao seu lado uma família de canários. Quando a juriti apressou-se a tentar afugentá-los, um dos canários machos pôs-se bem em seu caminho, abaixou-se como que pronto a um salto, imóvel encarou a juriti e escancarou os bicos numa nítida posição de defesa-intimidação. A situação era um tanto bizarra, dada a desproporção de tamanhos entre as duas aves, o canário muito menor que a valente juriti. Mas não é que a juriti respeitou o canário, talvez não tivesse avaliado que ave tão pequena tivesse bicos tão largos e machos tão audazes!

E a família de pequenos pôde ciscar bem tranquila, ao lado da agora respeitosa juriti.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).