Culpada ou Ocupada?

Se os sinos batessem como antigamente não ficaria à mercê da ignorância. Cidade do interior tem as suas peculiaridades, é uma espécie de universo individual, um infinito particular.
Quando alguém falecia o toque era funesto, demorado, triste. A morte era anunciada para uma dor coletiva, mesmo de alguém desconhecido, para que os moradores soubessem que alguém estava se despedindo, o sentimento era partilhado, e cada um segurava nos braços fraternos a dor do outro para fortalecê-lo. Uma espécie de acalanto, uma rede de amor e solidariedade. Com cada palavra amiga ou mesmo um pensamento de desejo de superação da dor, a pessoa se aquecia. Um cobertor sem nome, sem endereço, sem explicação: um cobertor social.
Mas se era festa e alegria, São João e Nossa Senhora da Guia, os sinos eram rápidos, estrondosos, tinham efeitos de magia. Uma simbologia que nos colocava a par das mais diferentes ocasiões maquela cidade. Sem contar que ao passar das horas, com números inteiros, o toque era um convite ao atraso ou ao compromisso que não poderia faltar. Os sinos eram despertadores. Aliás, são despertadores, mas não somente de pessoas que perdem as horas ou as acompanham, mas de desejos e vontades, de lembranças de um tempo de criança.
A casa pequena, aconchegante, tomada de curumins a correr por todo o lado. Tinham uma febre de ação contraposta pela de recolhimento imposta pelos pais. Era somente um olhar e tudo estava pronto, ajeitado. Se era uma tarefa a cumprir, já se antecipava. Se era para ralhar por causa da última desordem aprontada, o silêncio e a cabeça baixa se acionavam, em segundos. Uma espécie de respeito com ares de medo ocultado (insultado). Não era possível fugir às regras tão bem estabelecidas para a época. Um tempo bom de se viver. Não podiam os pais, oferecer aos seus filhos o carro do ano ou a melhor escola particular, mas nada lhes deixava faltar em necessidade. Nem o carinho, tão pouco visto nos últimos tempos.
Passear pela praça da cidade vendo a amarelinha ser jogada em família, todos os irmãos, um de cada vez e na sua hora. Ou um belo jogo de cartas entre os avós que levavam os netos para aquele belo passeio no fim de tarde. Enquanto se alegravam com as cartas e as damas que por ali passavam e perfumavam o ambiente, corriam os olhos nos pequenos que de lá não sairiam, tão pouco fossem convocados para tal.
Cena de filme. Jardins floridos. Bicicletas e triciclos. Todos estavam sorrindo. Estou sonhando ou estou mentindo? É realidade ou ficção? Ouvir os sinos que embora pequeninos se tornaram grandes ao longo da terra que se fizeram ouvir.
Sinto saudades daquele tempo em que mãe tinha cheiro de colo ou que colo tinha cheiro de mãe.
Que se chovesse era uma celebração, a água era como vida, e não como uma mera opção.
Dos risos fortes, pra não dizer gargalhadas, sem a preocupação com quem está ouvindo.
Dos passeios de ônibus pelas cidades vizinhas, escolhendo o assento pelo corredor ou na janela, sem se preocupar com horas, afinal era um ônibus de dia e outro à noite, não sobrava a coluna do meio.
E os doces tinham gosto de amor, quando recebidos de um ente querido. E se multiplicavam a cada pessoa que pela calçada se encontrava. No fim era um melado. - Nada de lambuzar os beiços! Era aguardada a hora de degustar. - Agora vamos pra missa.
O tempo passou. São vidas que vieram e se foram. Os sinos continuam tocando? A freqüência da onda é que acabou. Ou será que estou tão ocupada que nem percebo o toque dos sinos? Não observo o tempo em que ele vai e vem trazendo as mensagens? É. Quiçá?
Sinto saudade dos sinos ao vento. Dos sons que dele se fizeram ecoar. Estava OCUPADA e não ouvi a mensagem que ele quis passar? Neguei este pensamento. Não estava ocupada quando das badaladas do gongo, de fato, sou CULPADA pela perda do eco que os sinos faziam pelo ar: Desisti de eternizá-lo.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 22/03/2019
Reeditado em 16/05/2019
Código do texto: T6604394
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