Quando a Morte Insiste
É quase inevitável recorrer a uma leitura mística diante de situações que ratificam o pensamento de que se estava predestinado a morrer de determinada forma. Afinal, como explicar o fato de que um sobrevivente, ou alguém intimamente envolvido em uma grande tragédia, venha a falecer logo após este acontecimento, em outra ocorrência trágica?
Nesta semana, dois episódios comoventes chamaram a atenção: o primeiro é o de um sobrevivente da tragédia de Mariana, um soldador que prestava serviços para a Vale, que teve o corpo encontrado no desastre de Brumadinho. O segundo é o do pai de uma sobrevivente do ataque de Suzano, assassinado ao fim do turno de trabalho, quando, segundo matéria publicada no portal MSN, levaria sua filha ao psicólogo. Ele era segurança em um shopping na zona leste de São Paulo. Chamo a atenção para a relação de proximidade cronológica ou de natureza entre os primeiros acontecimentos e aqueles nos quais duas vidas foram ceifadas. O apelo ao pensamento religioso, tão presente em nossa cultura, indicaria uma predestinação, uma personificação da morte como um trabalhador que, ao fracassar na primeira tentativa, buscou ocasião em uma segunda oportunidade, por exemplo. Respostas simples, provenientes de jargões, são ouvidas: “era a hora”, “a morte só quer uma desculpa”, “pra morrer basta estar vivo” etc. Mas, para além das respostas, quais perguntas podem ser feitas? A primeira que me ocorre também diz respeito a um movimento comum: “Por quê?”. Apesar de ser uma pergunta aparentemente simples, neste caso, a sabedoria popular acerta na mosca, em minha opinião. Perguntar “por quê?” é a abertura para novos passos – entre eles, ser capaz de perguntar: “por que não?” - e não se satisfazer com as respostas simples é o passo seguinte. Se há uma resposta possível pode ser que nunca saibamos, mas talvez faça parte do caminho para essa “revelação” concluir que contingências existem, que fatores externos, não exatamente transcendentais, mas do campo sociocultural, atravessam tais acontecimentos. Vivemos em uma sociedade à beira do colapso, que se artificializa e se distancia cada vez mais da natureza – se é que se pode falar em natureza humana -; o sentimento é o de se estar em uma panela de pressão. Certamente há alguém fora dessa panela, uma parcela da população que é quase intocável, que é cultuada e sustentada pelo suor dos mortais, que quando não são convencidos de entregarem suas vidas em favor de objetivos que não são os seus, as têm roubadas por descaso, negligência e violência – deliberada ou permitida. Nós criamos a civilização. Para muitos pensadores, Freud entre eles, isso não é natural e é precisamente o ponto no qual se apoiam nossos sofrimentos mais centrais. Podemos transformar o que criamos. O ato criador é sempre o mais difícil, e este passo já demos. Bem ou mal, já demos. Um dia, talvez no futuro de H. G. Wells, no ano 802.701, haja um mundo no qual tenhamos problemas, mas sejam outros. Um mundo onde não seja necessário dividir os seres em Elois (aqueles que vivem sobre a terra, que se relacionam e têm acessos) e os Morlocks (os seres do subterrâneo, sensíveis à luz, truculentos e selvagens). Para ele, no futuro esse seria o formato da civilização. Para mim, esse formato já existe hoje e está matando muitos Morlocks.
Matérias:
https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/pol%C3%ADcia-prende-acusados-de-matar-seguran%C3%A7a-em-shopping-da-zona-leste/ar-BBV1eYt?li=AAggXC1
acesso em 21 mar. 2019.
https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/corpo-de-sobrevivente-de-mariana-%C3%A9-identificado-entre-as-v%C3%ADtimas-de-brumadinho/ar-BBV0vY2?li=AAggXC1
acesso em 21 mar. 2019.