a rua curiúva

Imaginem uma rua com um único quarteirão de comprimento, só cinco casas de cada lado. Uma ladeira que começa, lá no alto, na principal avenida do bairro, e despenca encosta abaixo, logo terminando numa ribanceira baldia, com grandes angicos em meio a um matagal urbano.

Pois essa é a Rua Curiúva, onde as poucas casas dispensam identificação. São todas, democraticamente, sem número. Ela é pavimentada com aquele mosaico de pedras negras irregulares, desajeitadas, mas presunçosamente chamadas de poliedros. A forte enxurrada ladeira abaixo vive arrancando-as de seus lugares e espalhando-as pela superfície, e assim torna a rua ainda mais irregular e obstaculosa. Não faltam buracos, sobressaltos e pedras soltas com que alguns passantes teimam alvejar os cães quase de rua que por lá vagueiam.

Sim, quase de rua. Porque, embora tenham donos, vivem famintos e descarnados. Assaltam as lixeiras mais providas das casas da avenida lá no alto, ou do restaurante da esquina, carregam os sacos de lixo ainda inteiros até as calçadas da Rua Curiúva, e ali os destroçam, espalhando pelo chão todo tipo de imundície, em busca de algo comestível.

As grandes e descuidadas lixeiras do restaurante são estrategicamente colocadas na Rua Curiúva, e não na avenida. Nelas, cães, ratos, gatos, moscas, baratas e às vezes pessoas de rua reviram o lixo, quebram garrafas e espalham os cacos de vidro. Um amontoado de detritos que os garis não logram recolher. Implacáveis e desabonadores monturos vão ali se juntando. As mulheres que trabalham no restaurante em vão esforçam-se em recolher o lixo espalhado e enfiá-lo em novos e inteiros sacos. Mas logo, teimosamente, eles estão de novo destroçados e derramados pela rua. Um poder de renovação do lixo digno de minuciosos estudos.

E a mesma enxurrada que arranca os calhaus também se ocupa de espalhar o lixo ladeira abaixo. De tal sorte que a Rua Curiúva tem o azar de estar sempre coberta de resíduos de toda natureza. Descartes que traduzem bem as sobras do que se anda a consumir nesta nossa época de insano e desenfreado consumo.

Os poucos moradores da Rua Curiúva parecem comportar-se como os moradores das outras ladeiras mais abaixo. São transeuntes, itinerantes indiferentes, aparentemente sem nenhum vínculo com a rua. Só a utilizam como passagem inevitável no itinerário entre suas casas e a civilização, que começa na avenida lá no alto. Acostumaram-se com os magérrimos cães de rua, com o lixo, com as pedras soltas, com o mato que cresce nos buracos e no vão entre as pedras. Apressam o passo, nutrem íntimas e mesquinhas disputas com os famintos cães que, enfurecidos, são afastados a pedradas. Mesmo a dócil e submissa grande cadela tigrada, que por ali vive sempre cercada de esfomeados filhotes tão magros quanto ela mesma, a sugar-lhe as murchas e ressequidas tetas, transforma-se, nas vilezas da Rua Curiúva, numa fera assustada e agressiva.

Ironicamente, se conseguimos caminhar pela Rua Curiúva com o olhar no vasto horizonte que de suas alturas se descortina, e para tanto é necessário conseguir alçar os olhos, desviando-os do lixo, das pedras soltas, dos buracos, dos cacos de vidro, do mato, dos tristes cães de rua a perambular pelo chão, o que se mira é uma belíssima porção deste nosso mundo. A oeste, a remediada cidade com seus crescentes e coloridos prédios tomando o alto dos outeiros. A leste, matas ainda bem preservadas onde aparecem até imponentes araucárias, em grandes e especulativas propriedades baldias nos limites dos bairros mais distantes. A sul, um extenso e verdejante horizonte de suaves colinas lavradas, encimadas por um céu variável, que aos bons observadores revela bem aproximadas previsões das condições meteorológicas.

Tão pequena, a Rua Curiúva sincretiza, assim, as mazelas do desleixo, do descuido, da ignorância, com a beleza de um mirante natural debruçado sobre o horizonte, observando a cidade espalhando-se pela generosa vastidão dos campos.

Assim é a Rua Curiúva. Ou será que assim é toda a cidade, a rua lhe é somente um diminuto arremedo?

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).