o pardal perneta

Todas as manhãs bem cedo, pouco antes do raiar do dia, minha esposa e eu esparramamos quirera e outros grãos para pássaros sobre o muro bem em frente à janela da cozinha onde tomamos café, em nossa casa na Vila Estrela. Com a alvorada aparecem as juritis, pardais, tico-ticos, pássaros pretos, rolinhas, joões-de-barro e às vezes até canários-da-terra.

Os pássaros fazem uma festa, uma alegria que contagia o nosso desjejum. Divertimo-nos com a algazarra da passarada, que faz estripulias na desnecessária disputa pelos grãos, que nos lembram as insólitas disputas em que provavelmente nos meteremos com nossos colegas de trabalho e de jornada ao longo do dia que se inicia.

Numa manhã, um movimento estranho nos chamou a atenção no meio do rebuliço da passarada. Fomos olhar mais de perto, era um pardal macho adulto, a quem aparentemente faltava uma das pernas. Ele arrastava-se aos trancos, ajudado pelas asas, no encalço dos grãos sobre a superfície do alto do muro. Seu esforço era enorme, desajeitado, às vezes ele chegava a realizar uma cambalhota completa para trás, quando seu intuito era ir para frente. Uma visão ao mesmo tempo triste e risível. Uma inabilidade que denunciava que o incidente que o mutilara era bem recente. O pobre pássaro ainda não aprendera bem a virar-se com a única perna que lhe restara.

Compadecemo-nos de ver seu estabanado esforço, constatamos que ele podia voar bem, mas que se equilibrava com dificuldade nos galhos da árvore acima do muro. Ficamos imaginando o que lhe teria acontecido, e o que iria ainda lhe acontecer. Nunca o víramos antes, será que ele se tornaria um frequentador habitual do nosso muro? Será que sobreviveria a tanto esforço? Será que teríamos que colocar a quirera outras vezes durante o dia, para garantir o sustento daquele inesperado hóspede inválido?

Com essas dúvidas, fui para o meu dia de trabalho, onde me aguardavam outras dúvidas e revelações, muito diferentes. Ao retornar para o almoço, perguntei à minha esposa como fora a manhã com o pardal perneta. Ela contou então, compartilhando comigo sua tristeza, que o pobre bichinho durara pouco. Ela o viu ciscando no chão junto com outros pássaros a quirera que caíra lá do alto do muro. Um instante depois, viu-o na boca de nossa vira-latas, que tem aguçada índole caçadora, e que anda sempre à espreita dos pássaros distraídos ou debilitados. Caça-os e devora-os como se já não tivesse devorado sua cota matinal de ração. Apesar de submissa à domesticação, nosso pequeno jardim é para ela um campo de caça, onde exercita e mantém bem vivos seus instintos mais básicos. Minha esposa disse que observou quando a cachorrinha notou o pardal deficiente, e começou a persegui-lo com o olhar, esperando astutamente o momento certo do bote.

E seus instintos nos deram, naquela manhã, uma eloquente e dolorosa lição: a natureza, a vida, é implacável com os vulneráveis.

Pobre pardal perneta, suas inadvertidas e divertidas cambalhotas para trás ainda me causam riso e dor.

Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).