Abaixo os 10% já!
O Brasil vive um surto de protestos e reivindicações que dura já quase um ano. Protestamos contra quase tudo, mas o alvo preferido de nosso rancor é o “governo”, que, como diria Freud, catalisa bem a projeção de nossas frustrações pessoais.
Mas a verdade é que toda a nossa sociedade, a família, o sistema educacional, a saúde, o cidadão na rua, o político, o governo, o mercado financeiro, as polícias desvirtuadas, as igrejas que nem na idade média venderam tantas indulgências, a mídia manipuladora, as empresas privadas, estão em profunda crise ética. Os valores e crenças que nos davam um rumo estão ruindo. E ainda não fomos capazes de adotar novos valores e perspectivas para substituir os obsoletos.
Mas sem dúvida algo marcante na crise que vivemos é a falta de respeito com o outro, que se manifesta de muitas formas: abusos, violência, assédios, preconceitos, desonestidade, negligência com tudo o que é público, agressividade e imprudência no trânsito, corrupção... A lista iria longe, mas a palavra corrupção é a que anda na boca dos manifestantes: corrupção no governo, corrupção entre as autoridades.
Parece que o brasileiro ainda não se deu conta de que o governo emana do povo. Se o povo é desonesto, corrupto, vicioso, não há como esperar que seu governo seja melhor. Um exemplo? A gorjeta de 10% que pagamos no restaurante. Ora, por que esse tributo? Para sermos mais bem atendidos? Mas isto já não é uma obrigação do restaurante e dos seus funcionários para conosco?
E a cultura da propina dos 10% propaga-se, do restaurante chega até os contratos dos serviços públicos, onde o efeito multiplicador faz com que os 10% cheguem a 20, 40, 80, 100%! Não é isto que temos visto, por exemplo, no orçamento das obras para a Copa, sendo campeão desta multiplicação o estádio de Curitiba?
Sou antiquado, não tenho nem frequento as redes sociais, até por achar que elas ferem uma necessária privacidade de nossa identidade. Mas, se eu pudesse, começaria nesse inegavelmente poderoso meio de comunicação uma campanha:
ABAIXO OS 10% JÁ!
E que a campanha valesse não só para a conta do restaurante, mas também para a conta das empresas de lixo, ônibus e obras públicas, para os contratos da Prefeitura, do Estado e da União, para as transações financeiras, para serviços públicos, como na saúde, onde frequentemente os pacientes sofrem achaques ilegais, etc., etc., etc. ...
Se tivermos confiança de que podemos acabar com a cultura dos 10% naquilo que nos é mais próximo, conseguiremos. E a confiança de uma conquista assim pequena nos trará forças para transformações maiores, que são aquelas pelas quais clama nosso país neste momento de crise.
Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).