A barata folgada, Gregory

Tem histórias que, de tão absurdas, viram contos. Hoje vou contar

um fato que aconteceu comigo. O medo de me acharem maluco era tal,

que provavelmente ninguém acreditaria em tal história.

Era estudante universitário, adorava a badalação de estudante (alerta

de sarcasmo!). De manhã trabalhava numa gráfica e com o pouco

conhecimento em informática que tinha, tirava o suficiente para a minha

vida de universitário, as cópias e a coxinha do intervalo. Morava só,

numa kitchenette alugada com muito custo e ajuda de meus pais.

Amava meu lugar. (Sem sarcasmo).

Lá pelas tantas do final de tarde, lá ia eu, mochila no ombro, para

mais uma noite de estudos. E logo vieram as férias e eu, cansado, só

pensava em jogar meu videogame (e os poucos jogos que tinha!),

dormir e comer pizza. Pizza. A vitamina do jovem. Comia dia sim, outro

também. Amontoava as caixas e me lembrava de tartarugas ninjas e

como amavam pizza. Pizza. Pois é. É aí que começa a história.

Um dia, eu estava deitado no sofá, controle de um lado, caixa de

pizza do outro. Ao pegar um pedaço uma sensação estranha na mão.

O susto. O grito (que por sorte só eu ouvi. Constrangedor!). Era uma

barata. Baratas são estranhas. Vivem a nos rondar, mas sempre se

aventuram em aparecer para nós e nos causar pavor. Não que tenha

medo de baratas, não. É só aquela sensação incutida na gente desde

pequeno. Asco, nojo, terror. Baratas têm asas, todas têm, não sabia

disso. Suas anteninhas funcionam como olhos. E dão leite. Leite! Mas

mesmo ante todos esses argumentos, acabei por fazer amizade com a

barata. Pois é, como? Estranho um bichinho tão nojento não ter medo

de um ser humano. Por dois ou três dias ela vinha, sempre sorrateira,

perto do meu sofá. Eu dava um pedacinho da minha pizza, piscava oolho e "zap", cadê o pedaço e a barata? Lembrei-me de Metamorfose

do Kafka. E não era o original, com o besouro, mas aquele que li antes,

com a barata. Gregory, dei o nome ao meu pequeno e asqueroso

amiguinho. Gregor era um nome esquisito, parecia que cortava do nada,

então batizei Gregory, a barata. E a parte absurda veio a partir da

história mesmo, de Kafka.

Meio de julho, estava frio e eu, variando no dia, estava a comer

pizza. Jogava meu game, ouvia minha música. Eis que a campainha

toca. Abro a porta. Um cara nu. Da minha idade, mais ou menos. Nu.

Na minha porta. Dez graus de frio. Nu. Tremia e sussurrava. Piii-zzzaaa!

Piii-zzaaaa! Pensei ser piada e fechei a porta. Um cara nu na minha

porta. Loucura de algum outro universitário, chapado ou bêbado, para

não dizer o mínimo. Estranhei o fato que Gregory sumiu. E a campainha

tocou de novo. Duas, três, quatro vezes. O cara nu. Sem a paciência de

alguém que estava de pé de meia a porta de casa conversando com o

tal nu, perguntei: "o que você quer?" Piii-zzaaa! Ele respondeu. Nem

roupas, nem dinheiro. Pizza. Já ia fechando a porta quando ouço:

"Greg.. Gregg... Gregory!!"

Daí em diante, a história é Kafka: sem entender direito, abri a

porta, olhei para as portas ao lado, a vergonha me tomava. Empurrei o

pelado para dentro e já meti o dedo na sua cara: "Como sabe do

Gregory?". Senti-me invadido e irado com o stalker nu na minha

pequena, pequena mesmo, sala. Ele só repetia pizza, pizza e Gregory.

Por Deus, pensei o impensável: será ele a barata que alimentei? De tão

absurda a pergunta, mais absurda ainda a resposta: ele ficou no mesmo

lugar da barata, lá, esperando, olhando... a pizza.

Dei a ele um pedaço, que comeu ali mesmo, do chão, sem usar

as mãos. Parecia pouco familiarizado com o corpo humano e eu tive de

ensiná-lo, mas claro, antes, eu tinha de vesti-lo.E assim virei professor de uma barata que havia virado homem.

Ao contrário do Gregor de Kafka, um rapaz trabalhador que pensava na

família, Gregory era folgado. Quando eu chegava em casa, tudo estava

revirado. Lixo, caixas, cantos, latas. Comia como um condenado,

vivendo numa prisão que não conhecia, mas que adorava. Mesmo

homem não perdeu os hábitos de barata. E eu, além de tudo que fazia,

limpava a casa e fazia sua comida. Gregory espreitava, a cada prato

sujo, a cada caixa jogada fora. Agosto iniciava e as aulas estavam a

caminho. Pensava, por que eu tinha de cuidar de um marmanjo que

apareceu nu na minha porta? Coloquei-o para trabalhar. Dizia para

limpar a casa. Ao menos, espantou o rato que, obviamente não batizei

para não ter problema ainda maior.

Um dia me cansei, minha carteira já estava vazia, e casa, mais

vazia ainda. Levantei num sábado, vesti Gregory. Dei duas caixas de

pizza em suas mãos. Peguei no braço e conduzi até a porta. Ele olhava

só para a caixa de pizza, seu mundo estava ali. Botei para fora. Ele

atravessou a calçada e não olhou para trás. Esperava que olhasse e

dissesse “obrigado” ao invés de pizza e Gregory. Virou a esquina.

Sumiu. Fiquei uns 20 minutos ali e nada. Por fim subi. Um mês se

passara. A notícia num site: que acharam um louco com pizza na mão

e o levaram ao hospício. Lá provavelmente será melhor lugar. Lá,

pensei, ele sempre terá pizza.

Não sei se era como em Kafka, mas ao avesso: uma barata que

virou homem, ou um maluco que se achava barata e queria comer

pizza. Sorri, sentei no sofá, liguei meu videogame. Olho para baixo e

vejo uma barata. Ela se aproxima e para. Lembrei de Gregory. Peguei

o chinelo e matei a barata.

Baratas são folgadas. Baratas são como o Gregory.

Dom Torres
Enviado por Dom Torres em 20/03/2019
Código do texto: T6602605
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.