Conselho de amigo



          1. Nelson Rodrigues, usando dois pseudônimos femininos, escreveu maravilhosos folhetins e os publicou nos principais jornais do seu tempo. 
     Ora ele era Suzana Flag ora ele era Myrna. Sensacional, no seu inconfundível estilo, que podia ser irônico, contundente e crítico, mordaz, picante e muito romântico.
          
2. O Brasil inteiro se deliciava com as respostas de Myrna às centenas de cartas de leitores e leitoras, missivas recheadas de problemas sentimentais e amorosos, aparentemente insolúveis.. 
          Pelos títulos dados às suas respostas e conselhos, Myrna não podia esconder que quem escrevia por ela era um gênio.
          
3. E esse gênio chamava-se Nelson Rodrigues, o "Anjo Pornográfico", apelido que lhe foi dado pelo jornalista Ruy Castro, autor de sua biografia, a mais completa de todas.
          Alguns desses títulos e respectivos textos, claro, estão no livro do Nelson, "Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo", que usa o pseudônimo de Myrna, uma "expert nas questões de coração", assegura seu editor. 
          
4. Outros títulos de textos do mesmo livro: "Amar uma vez e sempre", "Conquiste todos os dias o seu marido","É uma delícia o ciúme sem motivo", "Fuja do homem bonito", "Elogio da solteirona", etc., etc., etc.
          
5. Respondendo à leitora Antonieta, que lhe indagara "Se a verdadeira lua de mel não acaba", Myrna, incisiva, afirma: "A lua de mel dura tanto quanto o amor". 
          E numa direta no coração da consulente: "...você não conhece o amor. Porque se o seu sentimento (o amor) fosse verdadeiro, você saberia que a lua de mel não tem prazo". 
          
6. Arrisco-me a dizer, que, para Myrna, a lua de mel é pra sempre, desde que o amor entre o casal alcance a eternidade.
          
7. Pois bem. Nessa altura de minha vida, fui, outro dia, procurado por um amigo, também de idade avançada, que se mostrava visivelmente triste e desconsolado. Sentamos num cafezinho de um dos Shoppings de Salvador, e ele abriu o jogo.
          
8. De repente, aos invés de um Cappuccino, pediu um Johnnie Walker, Red Label, em plena manhã de março, uma segunda-feira. 
     Deixei-o tomar seu uísque, lembrado de que o poeta Alceu, em 630-580 a.C., afirmara que "In vino veritas" , ou seja, "no vinho estava a verdade". O amigo, pois, depois de algumas doses, estaria pronto para desabafar. 
          
9. Olhando-me nos olhos, disse estar a-pai-xo-na-do! Confessou que estava amando uma jovem, mulher bonita, viúva, e mãe de um filho menor, por sinal, com o nome de um dos Arcanjos.
     E prosseguiu, dizendo que duas coisas o martirizava, naquele instante: ser a mulher bem mais nova do que ele e a cruel desconfiança de que ela não o amava... Um problema corriqueiro, mas que machuca...com certeza. 
          
10. Eu tinha que dizer algo de confortante ao amigo sofrido e magoado. Ajudá-lo a atravessar a borrasca amorosa que o atormentava, mais uma na sua vida, já a caminho do ocaso definitivo.
          
11. De repente me veio à lembrança uma das inteligentes  e sábias fábulas de Esopo. Providencial!  -  "Uma raposa faminta viu uns cachos de uva pendentes de uma vinha; quis pegá-las mas não conseguiu. Então, afastou-se murmurando: Estão verdes demais". 
          
12. E o amigo, querendo nem que fosse um simples sedativo capaz de minorar a dor provocada por uma paixão retardada, ouviu-me atento, como um penitente de antigos confessionários católicos. Já de astral novo, perguntou-me: "Rapaz, como você soube da existência dessa linda fábula? Ou melhor, como e quando a descobriu?"
          Olhei para ele com olhar de despedida; e lhe respondi: parceiro, deixemos isso pra lá... Ele me pareceu ter entendido a resposta; não insistiu na pergunta...   
      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 19/03/2019
Reeditado em 28/10/2020
Código do texto: T6602084
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