"Nós, os répteis"
O bizarro início de frase acima foi proferido no ano de 1973, por um professor de Paleontologia durante uma aula do curso de Geologia da USP. Obviamente, tratou-se de um ato falho do já falecido professor, que teria pretendido dizer “nós, os mamíferos...”. Pela sua naturalidade e picardia, a frase tornou-se um mote do curso de Geologia à época: apareceu estampada em camisetas, foi pichada em muros da universidade, foi impressa no jornal do centro acadêmico e era pronunciada amiúde, sempre que se pretendia ressaltar incoerências e contradições praticadas por qualquer um de nós, humanos. Mamíferos ou répteis?
Mas quanto presságio poderia estar contido naquela aparentemente desastrada e risível frase! Pois após ela ter sido proferida alguns fatos nos levam a refletir sobre o quanto ainda somos répteis.
Os antropólogos e neurocientistas enfatizam que o Homo sapiens tem três cérebros: o mais antigo e primitivo, o cérebro reptiliano, é herdado dos répteis, e é responsável por nossos comportamentos instintivos, sobretudo o instinto de sobrevivência, que nos faz desconfiados, intolerantes, agressivos, competitivos, individualistas, ambiciosos; depois, há cerca de 230 milhões de anos, apareceu com os mamíferos o cérebro límbico, responsável por emoções que facultavam às mães a capacidade de cuidarem de suas crias até que elas pudessem enfrentar por si mesmas as agruras da vida; por último, há cerca de cinco milhões de anos, apareceu o cérebro neocortical, responsável pela capacidade de discernir, de estabelecer relações e previsões, enfim, de raciocinar.
Apesar dos inegáveis avanços da civilização atual, a par do conhecimento e da tecnologia talvez nunca tenhamos sido tão consumistas, tão competitivos, tão individualistas e tão condicionados por reflexos instintivos e agressivos. Alguns exemplos? As maiores indústrias do mundo hoje são a da guerra e a do petróleo, esta para mover as máquinas de guerra. Outro exemplo? A corrida aos postos de combustível do Brasil no mês de fevereiro passado, quando a mídia alardeou um desabastecimento que nunca ocorreu. Ou seja, parece que estamos numa época de conduta reptiliana, ocasionalmente associada com o cérebro neocortical. E abandonamos temporariamente o cérebro límbico, que nos permitiu o zelo, a solidariedade, a compreensão, a tolerância, o discernimento.
Então, estaríamos nós, atualmente, nos comportando mais como os répteis, e fazendo jus à despretensiosa frase do desatento professor de Paleontologia? As intolerâncias e irracionalidades dos dias atuais parecem nos dizer que sim. Pois vivemos ao mesmo tempo a civilização da informação, do consumismo, da manipulação e da farsa. O colossal volume de informação que está a nosso alcance parece visar, sobretudo, fazer-nos consumir. A mídia cumpre seu papel nesse arranjo, empenhando-se em convencer-nos da felicidade contida no consumo, seja de produtos, de comportamentos e ideologias clichês. E nunca antes fomos tão hipócritas, fazendo de conta que somos felizes e tudo vai bem, enquanto cresce a criminalidade, a violência, a corrupção, a intolerância, a ignorância, a incivilidade, a arrogância, a omissão, a conivência. Não respeitamos, não discernimos, preferimos seguir um consenso artificial que nos é sutil, mas implacavelmente imputado.
E o que é pior, como poderíamos diminuir os arroubos de nosso cérebro reptiliano em nome de mais expressão dos nossos cérebros límbico e neocortical? E cuidando para que estes estejam em harmonia, pois a sensatez depende do equilíbrio da emoção com a razão? Talvez isso fosse possível por meio da educação, da cultura, das artes, da ética inspirada na espiritualidade. Então, e como andam estes temas no mundo atual?
Afinal, nós, os répteis, ou os mamíferos Homo sapiens? Prefiro crer que estejamos só num lapso de animalidade, talvez um lampejo de nossos distantes ancestrais escamosos. Mas a afetuosidade e a racionalidade hão de preponderar sobre o egoísmo reptiliano. Lembrem-se, no tempo dos répteis, as fêmeas deixavam os ovos a serem chocados pelo sol, enquanto elas mesmas iam alimentar-se dos ovos de suas vizinhas. E as vizinhas, onde andavam?
Publicado no blog http://perrengasprincesinas.blogspot.com/ em março/2015.