Palavras são navalhas
A cena era a de sempre: fim de expediente, lotação repleta, rostos cansados. O roteiro: Metrô Itaquera – Cohab II. No impossibilitado de me sentar, candidatei-me a ir em pé, antes da catraca. A posição me permitiu registrar a cena e seu desenrolar.
Todo espaço é uma relação de poder. No caso, o motorista, pela força da própria função, era quem dirigia; o cobrador, sempre um assistente. Há duplas que tentam tornar essa relação mais leve, menos inibidora. Não foi o caso daquela chuvosa tarde de quinta-feira.
O cobrador se esqueceu do procedimento básico: fazer com que as pessoas, não importasse como, entrassem o mais rápido possível, para não atrasar a viagem. Veio, então, a dura repreensão do motorista. A correção em público é o pior tipo de deseducação.
Aquilo feriu, visivelmente, o cobrador, recém-entrado na juventude, adolescentemente ainda. Uma sequência de advertências se seguiu, pela qual o motorista enfatizou em alto e bom som a incompetência do cobrador. Era-o, talvez, um pouco. Fosse. Mas não era o caso para tanto.
Solidarizei-me. Havia algo de familiar naquele rosto marcado de espinhas. Sofria eu o sofrimento dele? Ou sofria nele o meu próprio sofrimento? O de tantos que tive nas repreensões já vividas?
Estabeleceu-se, então, o meu martírio: passei a torcer com todas as forças para que aquele jovem não cometesse mais nenhum deslize. Seria terrível a reação do motorista, redobrada de cólera. Pouco. Mas foi o que me coube, no possível.
E foi a lotação, em sua viagem um tanto fúnebre. Nem a música de fundo alegrou o ambiente. A amargura das palavras tornou o motorista mais severo, seco. O cobrador, abatido. Pudesse, fugiria no primeiro ponto.
Palavra não trocaram até o ponto em que desci. Apenas o melancólico: “Vai!”; “fecha!”. Mas e ele? Quatro horas, ao menos, trabalhariam ainda juntos. Em silêncio. Parecia. Melhor, talvez.
Palavra ida não volta mais. Se faz estrago, feito está. Seu corte, navalha que é – como bem disse o poeta – , pode até cicatrizar um dia, mas o sinal permanece.
Naquela chuva fina e fria, segui pela rua a pensar no monte de cortes que se espalham por meu rosto, por meu corpo. E no monte que já fiz por aí, pessoas afora.