BARQUINHO NA ENXURRADA

Na correnteza da enxurrada o pequeno barco de papel feito com folhas arrancadas do caderno antigo significava muito mais que um pequeno barco de papel construído para divertir o menino na tarde chuva forte. Era um enorme cargueiro cheio até o convés de sonhos. O pequeno barco de papel era ainda maior na imaginação. Era belo! Bastava piscar os olhos e o barquinho transformava-se num iate onde acompanhado de todos os amigos e sonhos o menino navegava por mares que nunca vira.

Sonhos não têm amarras ou âncoras. Vai até onde a imaginação permite navegar. Ao menino inexistia limites e via-se ultrapassando a linha do horizonte situada logo ali onde a enxurrada desaparecia virando a esquina. Quantas pessoas caberiam no seu transatlântico impossível de afundar a fazer inveja ao Titanic? Pouco conhecia da história do navio gigante atropelado por um iceberg perto de um lugar muito longe dali pondo fim a vida de centenas de passageiros vitimado pela colisão dos sonhos com a realidade da noite gelada de um abril do século passado. Olhava o pequeno barco de papel que cabia em sua mão e ao vê-lo chocar-se com uma pedrinha do tamanho de um iceberg na correnteza corria a desvirá-lo salvando todos os milhares de passageiros para que nenhum morresse e o comandante voltasse a ordenar velocidade total. O oceano sem fim deveria estar perto. Acreditava na força de seu barquinho balançando na onda da correnteza que descia a enxurrada e virava a esquina carregando adiante no convés a infância de sonhos nunca impossíveis.

Viu-se sentado na areia da praia admirava os surfistas equilibrando-se em suas pranchas desaparecendo à força das ondas do mar agitado e ressurgindo em pé como flutuassem acima das ondas. Imaginou-se igualmente vitorioso ao vê-los sair caminhando do mar após vencerem o desafio daquelas ondas gigantescas. Sabia da existência delas através das fotos da publicidade da agência de viagem do centro da cidade. Paradisíaca e maravilhosa ilha no meio do Oceano logo depois da linha de seu horizonte. Prometeu para si um dia fazer um cruzeiro em seu transatlântico e passar pertinho dessa ilha. Desceria do navio em sua prancha mágica e depois de chegar à praia voltaria andando sobre as águas. A ilha era logo ali na linha do horizonte e seus sonhos bem maiores que o pequeno barco de papel. Ainda era jovem e a maioria dos sonhos possíveis.

Sempre que podia passava pelo cais do porto e admirava os navios ancorados. Qual poderia carregar o tamanho de seus sonhos? Aquele cargueiro? Era bem grande. Nem tanto. Aquele outro? Também não. Era feio. Finalmente... Um transatlântico com a altura de um prédio de vinte e cinco andares e 363 metros de comprimento. Poderia levar seus nove mil amigos da rede social que ele não conhecia. Imaginou-se desfilando pelo convés acenando para seus admiradores. Quase despertou à realidade quando a sirene anunciou meio-dia. Misturou-se à multidão correndo em direção aos refeitórios. Foi matutando se permitiam pudesse entrar no barco só para dar uma olhadinha como era sentir-se rico. Queria ter certeza que era do tamanho de seus sonhos. Quanto teria que trabalhar e tornar alguns possíveis.

O céu escondeu o sol anunciando outro temporal de fim de tarde. Estremeceu de medo à lembrança do dia que a terra do morro deslizou justamente no lugar onde um menino brincava de barquinho feito de folhas de caderno. O corpo do menino foi encontrado sob o mar de lama sem notícias do barquinho. A cena estarrecedora causou-lhe choque de realidade. Quantos sonhos o menino jamais realizaria. Não navegaria num transatlântico entre a beleza do mar e a ameaça dos icebergs e tsunamis. Nunca desembarcaria de uma prancha sorrindo vitorioso sobre a grandeza das ondas do mar. Nem saberia como é grande o lugar onde os barcos estacionam.

Passado o instante traumático olhou para o fio de enxurrada que insistia correr. Arrancou da parede um papel de publicidade inútil e impossível para ele e pacientemente construiu um barquinho. Sentou-se como fosse ainda a criança cheia de sonhos nunca impossíveis e soltou-o no filete da enxurrada. Levava nenhum ou poucos sonhos que lhe restavam conformado na certeza de talvez nem passassem da linha do horizonte logo ali onde a enxurrada virava a esquina.

Veio-lhe a realidade numa lógica cruel. Sonhos e pesadelos andam de braços dados. Um sonho pode transformar-se em Pesadelos. Estes são irreversíveis.

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 17/03/2019
Código do texto: T6599891
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