Segunda-Feira

Era para ser apenas mais uma manhã. Sim, uma simples manhã de segunda-feira, naquele final do mês de agosto quando sentado, da janela de um ônibus, menos mal acomodado que algumas dezenas de passageiros que viajavam de pé, espremidos uns contra os outros, eu vi; caminhando lentamente e com passos trôpegos, um homem. Um homem? Sim. Era um pobre maltrapilho, um mendigo; mas um homem...

Como já me encontrava próximo ao meu local de trabalho, um pouco mais adiante saltei. E, enquanto parado diante de uma banca de jornal fazia uma leitura dinâmica das manchetes, notei que se aproximava o mendigo; aquele que eu vira há poucos instantes. Observei que ele trazia em seus braços, afagando carinhosamente, um esquelético "vira-latas". Era cheio carinhos para com aquele esquelético cachorro, o que me despertou a atenção. Talvez naquele momento tenha me sentido na condição de um crítico de arte, o que nunca fui, pois pude perceber que os dois; homem e cão formavam uma unidade, um único quadro; um quadro que certamente retrataria uma obra prima do mais pessimista artista que pudesse ter existido, pois retratava a miséria nos seus mínimos detalhes.

Ali estava retratada a imagem fiel do que é a miséria em um homem; coberto de trapos, pálido e esquelético, barbudo e sujo. Mas daqueles seus olhos fundos e sofridos saía, como que, um pequeno raio de luz e de felicidade, quando olhava para aquele que tinha por amigo, apenas um cachorro; o seu cachorro.

Aquele seu amigo tinha os olhos esbugalhados e famintos; pelos sujos e soltos, com certeza devia cheirar mal, pois ainda tinha ferimentos nas suas patas traseiras.

Aquele quadro era composto de uma só imagem: a imagem da miséria, do sofrimento e da dor...

Em dado momento, afetuosamente, ele colocou no chão o cachorro que, como qualquer cãozinho bem tratado, começou a lhe fazer festa, passando-lhe sucessivamente entre as pernas, abanando freneticamente a sua cauda meio escarnada.

Não pude deixar de perceber no semblante sofrido daquele mendigo um sorriso alegre de um homem. Apesar daquela boca quase sem dentes, não era o sorriso tosco de um mendigo enlouquecido... Não! Naquele momento ali estava um homem feliz. Não era o louco ou o mendigo, mas sim um homem; um homem que, feliz como uma criança, sorria...

Subitamente, um copo de água fria, atirado de um bar, veio como que um raio, com aquela alegria acabar. Assustado, o cachorro afastou-se repentinamente do seu dono e correu para o meio da rua. Uma pancada seca e violenta se ouviu, e o cachorro, ganindo e esvaindo-se em sangue caiu, passando sobre ele alguns pares de pneus. E, como num piscar de olhos, a alegria da vida, simplesmente sumiu...

Como um alucinado, sobre aquele pequenino corpo, o mendigo se atirou, e com as mãos ensangüentadas, ergueu aquele corpinho inerte e para o céu ele olhou. Palavras ininteligíveis, no meio daquele trânsito louco ele pronunciou. Talvez palavras de súplicas a Deus, talvez até de revolta; quem sabe?... E como não obtivesse resposta, simplesmente, chorou... Chorou muito pelo cachorro, o seu amiguinho, morto; chorou talvez, quem sabe, até se culpando por tê-lo colocado no chão justamente em frente aquele bar...

Ele chorava copiosamente, totalmente desnorteado, alheio a tudo e a todos, enquanto caminhava abraçado àquele que fora talvez o seu único amigo...

Enquanto isso a morte, bem disfarçada, no meio da confusão, tranquilamente aguardava o instante de lhe colocar a mão...

E este instante chegou, nas rodas de um caminhão. O Motorista freou, fez golpe de direção, entrou pela contramão; mas de nada adiantou... Foi uma pancada seca, e tudo se acabou...

O motorista, ao olhar pelo retrovisor viu; caídos juntos no chão, formando os dois um só; o pobre mendigo e o seu cão, cercados já a esta altura por pequena multidão, da qual àquela altura também eu fazia parte...

Ouviram-se muitos comentários, e também muitas perguntas: "Como foi que aconteceu?”...

Lembrei-me então que há apenas poucos instantes, por causa da morte de um "vira-latas", o mendigo; que era um homem, chorou. E que talvez, quem sabe? de desgosto, tristeza ou dor; por causa dele morreu...

Daqueles corpos sem vida, muita gente se acercou... Muitos viram, comentaram, muitas perguntas fizeram sobre o que aconteceu. Mas ninguém; ninguém, nem sequer por piedade, a morte daquele homem chorou...

E.R.Calabar