Pura vaidade
Às sete e meia o relógio gritou e não parou até ser desligado. Fazia exatamente meia hora desde a hora em que Carlos havia pregado os olhos. Tinha passado a noite inteira às claras, lutando contra a vaidade, o ego e a soberba. Chegou até chantagear Deus. Carlos estava com a chance de sua vida nas mãos e não a podia desperdiçar. Tinha cinco anos de empresa, trinta e dois de idade e ainda morava com os pais. Ele tinha sido designado pelo chefe para coordenar a equipe de criação da campanha de uma das melhores contas da empresa. Era sua primeira vez que coordenava, e poderia ser promovido, ou até mesmo conquistar sociedade, se tivesse uma grande idéia.
Carlos ficou em casa durante o feriado todo meditando, fazendo coisas diversificadas que pudessem estimular a sua aguçada criatividade. Pintou telas; escutou todos os tipos de música: rock, bolero, clássico, até funk ele não evitou; cozinhou; viu o sol nascer e o sol se pôr; observou a lua; andou, correu, pedalou e dirigiu sem rumo. Relegou conversas com os amigos, a namorada e os vizinhos para não perder o foco e não desperdiçar tempo. Apesar de todo esse esforço, seu pai havia contratado um pintor para trocar a cor da casa, e apesar de seus pais não estarem em casa naquele feriado, o Teco, como chamava o pintor, estava, tagarelando sozinho quando cansava de assoviar. Carlos não tinha dado atenção ao pintor durante os três primeiros dias do feriado. No domingo, dia anterior à noite de insônia que lhe acometeu, já não estava se agüentando de tédio, e resolveu sentar nas cadeiras do quintal e observar o Teco borrar os rodapés das paredes com sua falta de habilidade.
Teco quebrou o silêncio que ecoava na cabeça de Carlos, dizendo:
- Ainda bem que você também não foi viajar.
- Que? ..... Tá maluco? Disse Carlos pensando no sol e na areia da praia, e a casa do pai no litoral norte.
- Não! .... É que assim num é só eu que fico trabalhando, né! E caiu na gargalhada exagerada e desajeitada.
Carlos resolveu não forçar muito a conversa, e apenas concordou:
- É verdade.
Carlos esperava que a conversa fosse terminada pelo silêncio que ele provocou, mas Teco lançou na seqüência:
- Cê tá fazendo o quê com esse mundarél de papel aí? Etá profissãozinha essa enhim? Eu já num dô cum tanto papel, eu ia acabá misturando tudo eles.
- Teco, por favor, estou tentando ter uma idéia. Disse Carlos com ar de preocupado.
- Idéia de quê? Perguntou o Teco com ar de professor. - Manda que eu sou bastante idéiudo. Das veis eu te dou uma. Posso até num ter ido ao culégio de piqueno, mas tô sempre cum uma idéia nova.
Carlos soltou uma gargalhada baixinha e pensou ironicamente: Deve mesmo. Eu que fiz duas faculdades e uma dezena de cursos extracurriculares não consigo ter uma idéia brilhante. Mas mesmo assim resolveu desafiar o Teco só para sentir-se melhor com a derrota do iletrado pintor, já que não tinha tido até então uma idéia da qual pudesse se orgulhar e mostrar para os demais integrantes da equipe.
Explicou para o Teco todo o trabalho que precisava desenvolver, tentando reviver em quanto isso cada uma das necessidades do cliente na busca de uma boa idéia. Sabia intimamente que Teco jamais poderia lhe ajudar. Pensou: seu nome era Teco exatamente porque tinha apenas um neurônio, pois se tivesse dois seria Tico-Teco. Entretanto, Teco fez apenas duas perguntas depois da extensa explicação feita e fez uma assertiva que jamais havia passado pela cabeça de Carlos, e acrescentou:
- A genti, das veis, picisa mudar de fócu Carlus.
Carlos desviou os olhos dos papéis, fitou Teco, com ar de desprezo e extasiado, e não pôde acreditar que ele realmente havia dado uma grande idéia. E para falar a verdade, era a melhor de todas aquelas que Carlos tinha pensado acerca do assunto. Era uma solução inovadora do produto, e além de tudo poética. Parecia uma daquelas propagandas da Jonny Walker. Carlos fechou a pasta de qualquer jeito, amassando todos os papéis, encerrando a consulta com o pintor e foi para o quarto. Ajoelhou-se no chão do quarto, depois de escrever a idéia em um pedaço de sulfite, e olhando para cima disse:
- Deus, meu Deus.... não é possível... Todos esses anos eu lhe implorando uma idéia. Uma boa idéia, nem precisa ser ótima, e eu fui incapaz de criar, e o Senhor deu ao pintor de nome Teco!... O que eu lhe fiz? Não sou merecedor de uma simples idéia? Digno de uma recompensa? ... É necessário me condenar à ignorância, depois de tantos anos de abnegação e dedicação? O que eu precisava fazer para ser premiado por um dedo de sua atenção?.... Meu Deus... meu Deus....
Clamou aos Céus durante a noite inteira por uma explicação. Indignou-se até pegar no sono com a roupa que estava e ser despertado pelo relógio na manhã seguinte às sete e meia.
Foi direto para o trabalho tomado pelas interrogações da noite adentro. Inquieto chegou à mesa de reunião e todos já estavam sentados. Fechou com força os olhos de olheira e sentou-se depois de anunciar um bom dia murcho e desconcertado. Todos se entreolharam ansiosos pela formatação da nova campanha. Então Carlos, pensara: É a minha grande chance. Vou sair de casa. Comprar um carro novo. Não posso negar esses privilégios, ..... mas .... não sou merecedor desses resultados. Não posso usar o que não fui o criador, além do mais sem autorização, ..... mas que mal teria? .... Que mal? .... Jamais vou aceitar isso, e esse é o verdadeiro mal. E pior: vou ter de dar uma parte do meu salário todos os meses para o Teco já que a idéia não era minha,.... mas sim dele, o pintor. Isso não.... não... não..., mas ele não iria nem saber mesmo!... Não, não... Não seria capaz de fazer isso,... mas porque não? ..... E, sem querer Carlos acabou pensando alto: Já chega! Não vai ser meu nem dele! Rasgou o papel, pensou em matar um parente pois isso lhe daria mais tempo para pensar, e disse a todos:
- Desculpem gente. Meu avô faleceu neste feriado e não pude me dedicar ao projeto.
Roberto, o dono da agência, levantou-se e disse:
- Carlos, vamos até a minha sala, por favor.
Depois disso, Carlos foi demitido no mesmo dia, pois Roberto sabia que ele não tinha avô há tempos.
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Enfim, Deus sempre dá as coisas de mão-beijada, o que falta é perspicácia.