A imagem e a coisa

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(*) A acontecência aqui relatada se deu num tempo que se pode chamar arcaico, embora não tão distante, em que máquinas fotográficas serviam para tirar fotografias e os celulares, que eram raros, apenas para fazer ligações telefônicas. E o e-mail ainda era usado.

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Parque. Tarde de domingo. Doroth caminha com sua roupa esportiva e uma parafernália tecnológica na cintura. Sempre pode acontecer de alguém ligar.

Sophia, em outra parte, leva seus dois amores: o menor, a filha; o maior, a máquina fotográfica digital. Aquisição de pouco mais de um ano e de alto valor, essa paixão lhe custou o casamento. Antônio não suportou a mania de Sophia. Começaram a se estranhar na cerimônia, quando ela olhava mais para os fotógrafos que para o pastor. Seu book somou 172 fotografias, sem contar o álbum pequeno.

Durante os dez meses que durou a relação, era uma discussão atrás de outra. Antônio insistia para que Sophia desse um tempo, não levasse a máquina no culto, no supermercado, no cinema. Até o velório de uma amiga ela se atreveu a registrar!

"Sophia! Pra que levar a máquina?" A resposta: "Ué, pra registrar o momento, Tom". "Mas por que!?". Ela: "Por que os momentos são importantes, é óbvio!". Ele: "Mas se são importantes, devem ser vividos não fotografados". Ela, já nervosa: "Que conversa, Antônio!".

Semanas depois, ele volta à carga, na volta do dito velório. Tentando, agora, um raciocínio mais lógico: "Sophia, veja bem, se você se preocupa tanto em registrar o momento, achar a pose, ver o foco, acaba por não vivê-lo, concorda? E a intensão de registrá-lo é para ser recordado depois, não é? Mas se o momento acabou por não ser vivido, de tanta preocupação com a foto, o que é que será recordado depois? Hã?"

Ele havia conseguido: trouxera à tona o vazio existencial de uma pessoa fotomaníaca: ela não vive o agora, pensando na fotografia que será vista depois; mas depois, a fotografia se torna descartável, porque não se refere a nada... O tal momento, supostamente importante, acaba por não ser vivido. Sophia não encararia essa evidência; preferiu a ruptura com Antônio.

Doroth, mal a avistou, já deu um grito: "Sophia! Quanto tempo?" Um longo abraço, longas gargalhadas, bolsas se embaraçando, fios de fone se enrolando. "E esse bebê lindo!? Que gracinha, meu Deus, que fofura! Como você se chama, meu amorzinho?". Os três meses de vida não permitiram àquela criaturinha palavra, apenas um olhar arregalado. "Stéphany", respondeu Sophia. "Faz três meses hoje!".

Doroth, encantada, parabenizava Sophia pela filha. Não perguntou de Antônio; soubera. Quando fez menção com o corpo de querer pegar a bebê, foi contida pelo braço e pelo olhar penetrante de Sophia, o que a assustou. "Espera! Seu e-mail ainda é o mesmo?" À resposta positiva e um tanto atônita de Doroth, Sophia abriu um largo sorriso e disse: "Então corre! Vai pra casa agora e acessa a internet; vou fazer o mesmo!". Doroth: "É... tá! Eu vou... Mas por que, Sophia?" A amiga: "Você não achou minha filha uma gracinha? Pois é, assim, desarrumada, no sol, ela não fica bem. Você ainda não viu nada". E arrematou orgulhosa: "Vou te mandar no e-mail umas fotos dela!".

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 09/03/2019
Reeditado em 20/02/2020
Código do texto: T6593985
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