Sonder 24 horas
Hospitais sempre foram lugares que me deixaram levemente assustado – ou, no mínimo, inquieto. Mesmo que eu já os tenha frequentado mais vezes do que gostaria de admitir, a atmosfera de quietude extrema me parece esconder algo de bizarro; não querendo desmerecer a toda uma profissão, mas, talvez influenciado por tantos filmes de terror, sempre pensei que em algum lugar haveria algum louco pronto para me abrir e cutucar meus órgãos com ferramentas estranhas. Nem todas as minhas experiências foram ruins, no entanto, pois ao mesmo tempo um hospital pode proporcionar fascinantes exemplos daquela estranha palavra: sonder. O fato de que todas as pessoas do mundo seguem sua jornada particular – ou, nos termos mais simples de uma certa obra passável de um certo escritor medíocre, a “Lenda Pessoal”.
Pois bem; por circunstâncias deveras infelizes acabei internado no hospital — logo no início do presente ano de 2023, como um presságio de como seriam os restantes onze meses. Enquanto recebia doses de soro nas veias me divertia com uma alegre senhora e seu filho: ela era um pouco surda, e era necessário que lhe falassem muito, muito próximo a seu ouvido. No entanto, era uma relação muito bonita entre uma mãe idosa e seu filho, e pensei comigo mesmo por que eu jamais sentira ou sentiria o amor materno em toda a minha vida. Nunca tive, nem teria enquanto vivesse, devoção por meus familiares, sendo eu deserdado por todos – mas meus pensamentos de autopiedade agravados por meu mal se interromperam quando fui chamado para meu quarto, e um de meus peculiares prazeres do dia foi andar de cadeira de rodas pela primeira vez na vida.
No quarto, silêncio absoluto; a vista pela janela não era das melhores, mas podia enxergar as sacadas de um prédio vizinho, e as luzes, janelas e tudo o mais – me perguntei se aqueles que ficaram naquele quarto antes de mim, e os que viriam depois, pensavam nas vidas que seguiam suas rotinas naquele prédio vizinho, e os residentes do prédio, por sua vez, pensavam nos doentes. Meu único divertimento, afora este, era a televisão – talvez por estar sedado sob os efeitos da hospitalização, pois, como só Deus sabe, odeio a televisão. O tempo num hospital, inclusive, é um caso à parte: ora flui numa rapidez incomparável, ora estagna e um minuto parece uma hora. Quando mal percebi, minha primeira noite se passara, e a primeira metade de meu segundo dia.
Minha solidão monacal cessou quando tive que dividir meu quarto com mais um recém-chegado, cuja identidade manterei anônima por respeito. Vim a aprender que estava com um câncer ósseo; sempre pensei que câncer devia ser uma doença exclusiva aos trastes deste mundo. Foi a doença que ceifou meu mestre e um de meus tios, e agora maltratava aquele pobre-diabo que com certeza devia ter uma vida mais respeitável que a minha. Mas minha pena já se findava, e voltei restabelecido para a minha rotina, passando por miríades de pessoas que jamais tornaria a ver, mas que como eu tinham uma jornada – algumas que se findariam naquele mesmíssimo hospital, e talvez no mesmíssimo quarto onde fiquei. (Como foi o caso de meu pobre companheiro, que faleceu duas semanas depois; ainda hoje me pergunto por que não fui eu em seu lugar.)
Ao fim do dia, o check-up geral da situação me levou a ler “A montanha mágica”, e chegando em casa dormi quase em paz. Não houve chuva que levasse os vestígios embora, porém.
(São Carlos, 12 de junho de 2023)