CATANDO MEMÓRIAS
“O que lembro, tenho.”(1)
Há quem não dê muita importância às histórias narradas por pessoas de origem humilde, sem “estudo”. Nesse contexto, alguns ditos “letrados”, em sua maioria caracterizados como uma “elite cultural”, teimam em subestimar as “histórias das origens” contadas pelos povos tradicionais, por entenderem (os “letrados”) que são fatos não comprovados cientificamente, e por esse motivo, tratar-se, assim, de “história inventada”.
Mas, segundo a História da Humanidade, todo conhecimento que chegou à contemporaneidade, teve como ponto de partida, a oralidade dos relatos dos povos primitivos, os nossos ancestrais. Eles passaram, de geração a geração, seus costumes, suas crenças, suas experiências, suas descobertas, enfim, sua identidade cultural. E todo esse aparato de conhecimento cultural, constante das manifestações das expressões populares de cultura, tornou-se protegido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, através da Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005, como patrimônio imaterial da Humanidade. (2)
Rebobinando o filme da minha vida, vejo uma infância remota: Jacintinho, bairro da periferia, estrada de barro vermelho, sem luz elétrica, casa de taipa, piso de chão batido, aguado para “controlar” a poeira, fachada da casa em triângulo, uma porta de tábua à direita, dessas divididas ao meio, na horizontal, e uma janela à esquerda, que acompanhava a linha da parte superior da porta, dando um visual de “olhar harmonioso”, quando ambas estavam abertas, paredes rebocadas e pintadas de amarelo ocre, coberta com telhas de barro, calçada alta, na frente da casa, com três degraus, toda encimentada.
Após o café, à noitinha, uma gritaria na rua. Éramos nós, as crianças, brincando de roda, passa-anel, pai-francisco, de pega-pega, rouba-bandeira. Não havia automóvel para atrapalhar nossas brincadeiras.
Mas, quando a noite enluarada derramava seus raios de prata sobre a rua, fazia-se um silêncio, e todos corríamos pra calçada de dona Iraci, para ouvirmos suas histórias de reis, rainhas e princesas, que davam festas estrambólicas nos dias de casamento. Festas que duravam três dias com três noites e até semanas, e que nos faziam adormecer, ali mesmo, deitados numa esteira estendida na calçada, para melhor deliciarmos as aventuras da realeza. Complicado mesmo era no outro dia nos convencer que nossos irmãos mais velhos nos levara para dormirmos na cama. A gente acreditava que dormira no palácio do rei porque a festa do casamento da princesa tinha terminado muito tarde ...
E avançando meu filme para a contemporaneidade, me vem a figura da nossa Cinderela Pafinha. “Dama da Noite”, lá do reduto de Jaraguá, menina meretriz predileta de um famoso político nosso.
Pois bem! Na década de 1960, salvo engano, em pleno auge dos “bingos de carros O Km”, numa bela noite, lá não sei em que bairro, se Trapiche ou Pajuçara, a sortuda Pafinha deu seu grito real de sonhadora: “BATI!“... Nas ocasiões dos ganhadores do bingo a multidão era solidária. Num grito só “AQUI! ... BATEU! ... PERA AÍ! ... DEIXA ELA PASSAR! ” ... Entre gritos acompanhados por aplausos e assobios, a multidão ia abrindo caminho para a felizarda subir no palanque improvisado numa carroceria de caminhão e ter sua cartela conferida. O último número chamado era condição fundamental para consagrar-se ganhadora. Começa a conferência da cartela da Pafinha. A cada número, uma acelerada no coração e a confirmação da multidão em coro: “SAIU! ... CONFERE! ... CHAMOU! ... Para checar o último número da cartela, o locutor fazia aquele suspense, pra matar mesmo (acho que ele ganharia comissão se o ganhador enfartasse). Caprichava na impostação da voz e sentenciava: NÚMERO ... C O N F E R E! Gritos! Urras! Aplausos!
E Pafinha recebeu a chave do seu carrão O Km (não disseram o modelo, se foi um Sinca Chambord, um Sinca Jangada, ou um Corcel quatro portas ...). Pafinha agora estava rica! Podia vender o carro, pegar uma boa grana, comprar uma casinha, enfim, deixar “aquela vida”. Qual nada! Sabe o que a Pafinha fez? Não sabe? Vendeu o carrão por uma boa grana, convidou seus amores, amigos e a vizinhança para “o seu reino”, e “torrou” a dinheirama todinha numa festa que “durou três dias com três noites”! Igualzinha às festas das princesas que dona Iraci contava pra gente.
No grande dia, à porta do “seu palácio” nossa princesa toda sorridente e felicíssima recepcionava seus convidados com as boas vindas:
- “Você tá um pão!”.
E eles sorridentes, felizes e honrados respondiam:
- E ¨você uma brasa, mora!¨
Quanta felicidade! Quanta coragem teve a Pafinha! Como é poderoso sonhar! Pafinha, nossa heroina do baixo meretricio de Jaraguá, conseguiu concretizar o seu sonho de princesa.
E ai Pafinha, eu ouso lhe perguntar:
- “Valeu à pena?”
E lá do céu eu escuto sua resposta entre risos e beijos:
- “claro que valeu!”. “Tudo vale à pena se a alma não é pequena!”(3).
Qual criança não teve seu contador de histórias?
Quem não se encantou com a magia dos relatos dos nossos pais, avós, tios, parentes e aderentes?
Notas:
1 – cf. ROSA, Guimarães, apud LICIA, Nydia. Eu Vivi o TBC Teatro Brasileiro de Comédia. Coleção Aplauso. Série: Teatro Brasil. Apresentação p. 5: S.Paulo. Imprensa Oficial, 2007.;
2 – cf. DUPIN, Giselli. Revista Observatório n. 8. Para entender a Convenção. p.13. Disponível em: < www.itaucultural.org.br > Acesso em: 15.03.2011;
3 – cf PESSOA, Fernando. Mensagem. p.75.L&PM Editores, 2006