O NEUROLOGISTA

Não me arrumo mais.

Cabelo despenteado, roupão com um bolso pra fora, outro pra dentro.

Até chinelos trocados já coloquei.

Sento desengonçado, do jeito que os médicos desaconselham.

Dor no espinhaço? Já é parto das outras dores.

Já me peguei no espelho, contemplando por minutos o céu...da boca.

Pasta de dente então, só percebi porque no ônibus uma velha senhora

fazia sinais repetidas vezes limpando o canto da boca.

Sorte que os demais não viam, o celular os cegava.

O dia que troquei as meias e que fui perceber, na sala de espera do médico neurologista, que estava indo de mal a pior.

O doutor educadamente perguntou se estava tudo bem.

- Sim seu doutor!

Não sinto mais aquela convulsão ao olhar o noticiário de política e nem da previdência.

Acho que estou voltando a vida indiferente dos demais cidadãos.

Voltei a beber suco de laranja, comer queijo de minas e brincar com meu sobrinho nos jogos eletrônicos, derrubando aviões.

O doutor austero aprontou a receita.

Foi até um armário para retirar uma amostra de um remédio "mais leve".

Eu percebi na prateleira de baixo do armário uma fuzil AR-15.

Ele me mostrou a arma, subitamente apontou a mira pra mim, terminando com ela para cima, gargalhando sem parar.

Quando engasgou, me tranquilizou.

- Tem havido assaltos aqui pelo bairro.

É apenas questão de segurança mesmo.

Sorri apertadamente, e apressadamente peguei a nova receita e parti.

Passei pela Igreja, pedi benção, o que aliviou-me um pouco.

Percebi que o padre só olhava pra cima, provável que viria uma reforma do teto da igreja, matutei.

Cheguei em casa pensativo.

Tomei banho.

Escutei a chuva lá fora e fiquei preocupado com o totó.

Vesti o meu pijama (sem bolinhas) do avesso e descalço fui no gramado do jardim ver se o totó estava bem acomodado no canil.

Cansado, jantei, deixei a louça pro dia seguinte.

Não atualizei os dados políticos e nem da previdência.

Parei de pensar e fui dormir.

No outro dia era dia de trabalho.

Ser professor e ao mesmo tempo ensinar os alunos não é fácil, não.

Robertson
Enviado por Robertson em 27/02/2019
Reeditado em 19/01/2020
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