Circuito de Emoções
CIRCUITO DE EMOÇÕES
Embarcamos, eu e Dea, em Recife por volta das 15 horas, para chegar em Salvador às 16,05, segundo o Comandante da aeronave. Precisão britânica...
Pensava eu que teria minha ultima conversa com meu irmão Emilio, já que ele estava na UTI, fazendo hemodiálise. Problema sério nos rins, com repercussão em todo o organismo. Também com 88 anos, qualquer deslize de comportamento orgânico, leva a consequências inimagináveis. Mas como Sandra, a filha dele, minha sobrinha, é médica, e ele estava em um Hospital de respeito, todos pensávamos que era só uma questão de horas para ele voltar para sua residência. E com este espirito iniciamos nossa viagem ao desconhecido, determinado por Deus. Sandra iria nos buscar no aeroporto de Salvador.
Estavam ela e uns amigos, nossos desconhecidos, nos esperando. Parecia uma recepção de mal agouro. Pediram nossa bagagem para levar para o carro, já que o mesmo estava muito longe daquele ponto de encontro. Enquanto isso, Sandra nos convidou para tomarmos uma água na lanchonete. Fomos de espirito desprevenido. Ao sentamos perguntei por Emilio: _E, Sandra, como está Emílio? Melhorou? E ela respondeu, com a voz embargada: _Ele não resistiu à hemodiálise, e faleceu hoje às onze horas.
Dea soltou um urro de lobo indomável, e caiu num pranto inconsolável. Os passageiros que estavam ao lado refrescando-se com refrigerantes, pois fazia um calor de verão tropical, viraram a cabeça para olhar para nossa mesa, onde Sandra nos olhava com fisionomia de assombro, e eu lutava desesperadamente para não cair num lamento convulsionado, embora as lágrimas teimassem em escorrer face abaixo. Uma dor metálica rasgava minhas entranhas, apodrecendo meus instintos conservadores. O quadro dantesco estava formado pelo trio de almas penadas, de gentes que sofriam a perda de um ente querido, daquela pessoa que nos havia marcado as vidas em tempos remotos.
Emilio tinha sido o irmão que gravou em minha memória um aprendizado de vida que muito me ajudou a vencer as agruras que determinam a caminhada de um jovem que havia perdido a mãe em idade tenra, 17 anos. Com ele comecei a trabalhar, já que não gostava de estudar. Eu tinha muita disposição e ele muita paciência para ensinar um adolescente a se comportar num meio onde as disputas acontecem na arena empresarial. Emilio era importador de peças de automóvel, numa cidade que começava a sacudir a poeira para os grandes empreendedores; estou falando do ano de 1955. Passei por muito vexames, mas como dizia meu cunhado Elino Torquato:” Quem bota pobre pra frente, é topada”.
Nos idos da década de quarenta, quando eu tinha oito pra nove anos, minha mãe me avisava, quando o sol se despedia do dia: “Chieta, seu irmão tá chegando, se prepare, vá logo buscar o espelho!
É que Emilio chegava do emprego na loja de peças de Zé Lira, colocava um short, e começava a fazer exercícios, estando eu à sua frente com um espelho maior que eu, para que ele pudesse se ver, se envaidecer de uma musculatura incipiente. Ele fazia dez movimentos e se olhava no espelho que eu segurava com esforço, errando o ângulo, e ele brigando comigo, que não sabia nem segurar um espelho. “Ora, que menino burro, não sabe nem segurar um espelho! Mamãe brigue com Chieta, ele tá com preguiça de me ajudar!!!
E assim eram meus finais de dia na Rua João Machado, nº 889, em João Pessoa. Nunca vou esquecer que eu, para me vingar dos “carões” de Emilio, o chamava de Lota (seu apelido) e saia correndo para não levar um cascudo. Ele sorria, e dizia: ainda vou te pegar, tu vai ver!!!
Tenho saudade daqueles tempos de pura inocência, de brincadeiras entre irmãos que se amavam, de sacolejos emocionais que aos poucos vão formando uma história familiar. Tenho saudade dos meus irmãos... erámos sete, e agora só estou eu representando um clã que se foi desta vida para ficar ao lado de Deus. Já quero ir também? Não sei... será que já estou pronto para encarar o desencarne? Tenho que esperar o tempo de Deus, pois não sou dono de minha vida, apenas consigo vive-la, carregando meu alento.
Só no dia seguinte, dia 23 de janeiro de 2019, conseguimos ver o corpo (já não Emilio, o irmão, apenas o corpo de quem tinha sido meu irmão), do falecido. A história muda a narrativa, transforma entes vivos em passado finito, inda que recente. Os substantivos são modificados para um passado atualizado, e completamente diferente do que estávamos acostumados. Agora não é... agora, era. As lágrimas lavam a poeira das lembranças, de um amor que encheu, outrora, nossos corações. As lágrimas esvaziam nossas emoções, tamponam uma vertente de singelezas de ações guiadas pela fraternidade, pelo amor filial, pela emoção de uma família que se ama, acima de qualquer dificuldade, que sabe superar os piores momentos, uma família que se ajuda a vencer os enigmas dos momentos mais cruciais de vidas coerentes e retas.
Vim viver o último
sopro de vergonha -
vim chorar
a última lágrima...
vim fechar o
último olho.
O vai e vem do mar, lava todos os passados, o vento que vem do leste, empurra para bem distante as memórias doloridas, pois que do contrário não sobrevivíamos, e o sofrimento dá lugar a novas perspectivas, a novos valores, a uma chance da renovação.
Quando a mente se enche de saudades, os olhos se fecham para fazer descer a cortina do momento presente, e a alma, sôfrega de novos alentos, vai em busca de outras características vivenciais que possam preencher de emoções revigorantes, um presente concreto, que possa cultivar novas esperanças de futuro incerto e não sabido.
A roda gira, gira e gira, e faz transbordar de emoções nossos corações ambiciosos de momentos de felicidade. A cura se dá pelo pano parco de esperança que nunca fenece. Será que sempre vamos precisar de uma desculpa para continuar vivendo, ou sobrevivendo? E isto vale a pena?
Dia 25 Sandra nos roubou da Pousada para darmos uma volta pela cidade, para rememorarmos os tempos idos em que ali vivemos: eu, Dea e os três meninos.
Salvador está uma cidade maravilhosa para se viver, para passear, para curtir as praias, para comer, e para se exercitar; bem entendido... os jovens. Uma orla marítima formidável, grandes avenidas, parques arborizados, praças bem equipadas com bancos e aparelhos para se exercitar, com lanchonetes, com movimentos e cores. É um privilégio viver e trabalhar, hoje, em Salvador. Um brinco de cidade, onde há respeito pelo cidadão que paga impostos e vê o retorno em forma de modernidade.
Chorei de emoção quando vi os lugares que frequentei, onde trabalhei, onde fui com a família para nos divertir, para brincar, para comer, para sermos felizes. A cada esquina uma surpresa, uma alegria, uma nova paisagem renovada, um sucesso de melhoramentos, de progresso, de avanço cultural. O povo vibra, o povo acode em massa para espargir a volatilidade da alma livre do baiano carnavalesco. Parece que não há miséria, que não há pobreza, não parece que moramos no Brasil. O povo em eterna festa, comemoração com samba e cerveja. Fiquei encantado.
Voltamos a provar do tempero baiano, dos pratos com pimenta, com dendê, com muito camarão. A moqueca estava maravilhosa, e nós comemos como famintos, com os olhos esbugalhados em cima de pratos convidativos, fervendo sabores exóticos. Em dois dias, engordei um quilo, mas valeu!
No terceiro dia, após a cremação, quando não consegui deixar uma mensagem de despedida, porque tinha a voz embargada e suplicante de silêncio, tivemos que retornar às nossas paragens serranas e continuar a vida de cidade de interior, com suas vantagens e sabores nordestinos. A Academia, a família, os amigos vão aos poucos preenchendo nosso vazio, substituindo nossas saudades em tempos de hoje, de realidade que não nos abandona nunca. Como se diz:” A vida continua”.
Meu irmão Emilio morreu, aos 88 anos de vida célere, no dia 22 de janeiro de 2019.
Eu fiz aniversário – 81 anos - dia 24 de janeiro de 2019.
Comemoro ou choro?
Anchieta Antunes