Por engano
Estava para as bandas do Sul ultimamente, a trabalho e a contragosto, em busca de uns dinheiros suados. Tinha uns trinta anos, vividos por engano, como costumava me dizer. Dos loucos que conheci, foi um dos mais originais. Foi um dos que mais amou, dos que mais sentiu, dos que mais me fizeram crer na vida por engano.
Conheci-o nos corredores de uma escola pública, próximo da infância e longe do intervalo, gazeando umas aulas, alegando ser por engano. Não estava gazeando aulas, segundo sua defesa, estava sendo punido, por engano, pelo professor. Não havia feito o dever de casa, as operações aritméticas recomendas pelo mestre e, como punição, tinha sido ''convidado'' a sair mais cedo da aula. Mas, segundo ele, fora engano: havia feito o dever de casa; apenas o esquecera em casa... Eu acreditei, claro, e ficamos, assim por engano, amigos. Anos depois, perto de ''concluir os estudos'', abandou a escola. Estava, acreditando não por engano, apaixonado.
Casou-se, teve filhos e, talvez por engano, foi preterido pela amada. Revoltado, com dor de cotovelo, tomou umas cachaças durante algumas luas, dormiu menos do que o indispensável, contraiu dividas e, ao fim das contas, virou crente. Não durou muito na função. Faltou-lhe destreza para com as coisas divinas, que era assim, por engano, meio profano. Assim, com dívidas e descrente, não por engano, decidiu, a contragosto, recomeçar a vida lá para as bandas do Sul. Despediu-se dos mais próximos, arranjou um empréstimo com um parente caridoso e comprou uma passagem para a nova vida.
Há alguns anos não havia tido notícias dele, de como estava levando a nova vida; se tinha vencido as barreiras da carestia e safadeza ou se, por engano, por elas tinha sido tragado. Até ontem, dia em que um familiar seu me encontrou e me disse que o homem que vivia por engano morreu, por engano, lá para as bandas do Sul. Segundo me disse, o homem que vivia por engano ultimamente tinha deixando os cuidados da carne em segundo plano. Assim, deixara cabelo crescer, feito artes no corpo e se tornado um habitante dos corredores da noite, quando certo dia, por engano, foi confundido com bandido e recebido, por engano, doze tiros. Morreu por engano, mas a vida não o enganou; ele é que enganou a vida: esta vida por engano.