O amor é difícil

Padre, cometi o maior dos pecados. E, o que é pior, continuo cometendo e não há indícios de que um dia deixe de cometer. Não, não blasfemei contra o Espírito Santo, longe de mim. Mas nem por isso é menos grave o que venho fazendo, e nem por isso eu deixo de merecer os maiores castigos no além. Ora, o senhor conhece os maiores mandamentos. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. É justamente nesse último o problema, pois eu não tenho amado ninguém. Estou indo contra a mensagem de todas as religiões, não só da nossa. Estou indo contra a própria lei do Universo, padre. Diga-me: pode haver um pecado maior que esse?

Não, não estou exagerando. O senhor fala da minha família. Mas qual família, padre? Não tenho mais os pais, sou filho único e nunca me casei. Os tios, os primos, esses eu quase nunca vejo. Não diria que amo algum deles. Se amasse, eu os veria mais. Eu vejo poucas pessoas, não sei nem quem são os meus vizinhos. Amigos? Amigos eu tive, sim. Mas a gente foi envelhecendo e eles foram se afastando. E acho até que permiti que eles se afastassem, de certo porque eu não os amava de verdade. E agora cheguei a um estágio em que já não tenho nenhuma pessoa por perto a quem possa cogitar a hipótese de amar.

Tenho consciência de que isso representa uma aberração. Às vezes eu penso que o sujeito de direita, o sujeito de esquerda, o ateu, o evangélico, todas as pessoas, por mais diferentes que sejam, amam. Até os políticos corruptos que vejo na TV amam e são amados. O amor parece natural, mas, para mim, ele é muito difícil. E, como eu sei que preciso amar, que amar faz parte da ordem natural das coisas, até tento fazer algum esforço na direção das pessoas, mas tudo isso me custa muito e, no fim das contas, são pálidas tentativas de quem não sabe o que significa amar.

Outro dia, um desses moradores de rua veio até mim e pediu que eu lhe pagasse um almoço. Ele deu sorte, pois eu estava justamente em um desses momentos em que sinto que devo fazer alguma coisa em nome do amor, e por isso fiz o que ele me pedia. Mas, honestamente, padre, isso não me aliviou. Não acho que meu gesto tenha sido de amor de verdade, porque ele não foi espontâneo. Eu estava pensando: “Tenho que amar, é isso que torna as pessoas boas, é o que conduz ao céu, essa é a lei e os profetas”. Por isso eu lhe paguei o almoço. No fim das contas, eu estava pensando em mim mesmo, estava pensando em cumprir a minha obrigação de amar, porque aí, quem sabe, eu poderia ter um melhor destino nessa vida e na outra. Por acaso isso pode ser chamado de amor, padre? Não, o amor deve ser outra coisa.

Sem falar que se tratava de um único morador de rua. Para cada morador de rua que eu ajudo, há quantos mais pelos quais eu não faço nada? Será que eu devo pagar almoço a todos eles? Se eu sei que eles precisam de dinheiro e tenho algum comigo, como poderia passar por algum deles sem fazer nada? Não está dito nas escrituras que aquele que sabe fazer o bem e não o faz comete pecado? Eu cometo pecado, padre, todos os dias. Eu vejo moradores de rua no viaduto, sei que eles precisam de dinheiro, precisam de comida, mas eu não faço nada por eles, só muito de vez em quando me digno a pagar um almoço a um deles que for especialmente insistente. Eu não os amo como a mim mesmo, padre. Se amasse como eu me amo, não conceberia que eles passassem uma única noite embaixo do viaduto. E, no entanto...

O que eu queria saber, padre, é se há salvação para tipos como eu, que tão descaradamente deixam de cumprir a mensagem do próprio Jesus. O que eu devo fazer? Vender todas as minhas coisas e dar aos pobres? Pelo amor de Deus, padre, me diz!

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 19/02/2019
Reeditado em 19/02/2019
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