O verdadeiro lucro da barbárie
Arquejando na cadeira de balanço feita de bambu, procura encontrar ar límpido, puro, mas algo parece interpor nessa tarefa vital, pois um pano molhado, cheirando a álcool com outra substância tóxica, ajudada por uma mão, obstrui sua respiração. Os vizinhos, no dia seguinte, desconfiando do pior – pois o morador, metódico, deixara de sair no mesmo horário para comprar bolos e, posteriormente, regozijar no sol matinal –, chamaram os policiais para averiguar a saúde do morador centenário.
Chegando ao local os oficiais bateram a porta, mas ninguém os atendeu – o mais jovem, e também o mais pragmático, ao olhar por entre as fendas e notando o pé alcochoado do senhor mortalmente imóvel, arrombou a porta com facilidade. Adentraram no local e a princípio vira o trapo com forte cheiro a álcool que fora levado à perícia, haja vista que pudera ser indício de assassinato.
Comunicaram a morte, já esperada, aos familiares que fingiram pesar pelo acontecimento; numa dissimulação zombeteira, os netos mais jovens, fez pilheria: “Se ele tivesse vivido mais cinco anos eu o procuraria para descobrir a imortalidade”. Às nove horas do dia seguinte, reuniram-se os bisnetos, netos e filhos e, outros conhecidos, mais afeito ao morto.
Um policial, aquele mesmo jovem que tomou todas as providências para adentrar a casa, acompanhou a cemitério de longe, e notou a indiferença transpassada por comentários de bens e testamentos que, imediatamente, levantou a hipótese se alguns daqueles jovens netos não o assassinara para se exonerar da fatiga do trabalho e usufruir da riqueza do velho.
Tomando a dianteira no processo - que estivera quase arquivado -, após o enterro, deu auxilio a equipe técnico-pericial que, semanas depois, dera como verdadeiro a suspeita do policial; o bônus viera na forma de digital colhida, deixada no bambu da cadeira e, sem muita dificuldade, descobrira o nome do homicida: o neto detentor de mesmo sobrenome, parente próximo.
Por ordem judicial, fora mandado prender o neto e os ajudantes que organizara o crime. Tal acontecimento, por ser tão rotineiro, não exigiu mais que media dúzia de horas do jovem – e sua equipe –, mas experiente profissional. Na sua atuação presenciara crimes com mesmos traços, indícios semelhantes, e se perguntou o porquê crimes dessa categoria eram tão parecidos – desejou arduamente haver assassinatos mais sofisticados e trabalhosos para se resolver.
O retrato acima – que inclui o feminicídio, outro crime de banalidade naturalizada – no Brasil, e na América Latina, é rotineiro, de modo que, casos como esses, brutalmente covardes, passam desapercebidos e, no mais, são utilizados no canal mediático para Ipobe de grandes editoras: o verdadeiro lucro da barbárie, do sofrimento.
Vemos total desintegração dos valores sociais, na qual o capital e a possibilidade de “subir socialmente” prevalece ao amor, amizade, companheirismo por aqueles que tanto amamos. Mas isso, obviamente, ninguem vê, tapam-se os olhos: aliás, por quê se importar por homicídio de um velho centenário prestes a ter sua última inspiração cessada naturalmente?
Liga-se a televisão, a primeira notícia: "Jovém, de 34 anos, da periferia do Rio de Janeiro, matou brutalmente ...".