TUDO OU NADA
Estava com a cabeça explodindo de preocupação. Lembrou-se do tema do filme de Kleber Mendonça Filho - O Som ao Redor, que filma um condomínio de classe média alta em Recife. Contudo trocaria o título, pois o que a atormentava não era o entorno do prédio e nem se estava cercado da pobreza urbana. O que incomodava era o “Som de Dentro”, o som dos moradores.
O clima de violência se instalara no seu prédio diante da gravidade dos deslizes cometidos por alguns moradores, e da infração no gerenciamento do condomínio. Aos poucos se formou a possibilidade de conflito que explodiu com um fato grave – a invasão de um apartamento, que há vinte anos estava fechado por abandono dos proprietários. Ali dentro e por toda a parte era nitroglicerina pura.
Este episódio não só quebrou a rotina como remexeu com as emoções de todos que ficaram mais medrosos, tensos e indignados. Para conter o impacto, diminuir a revolta e manter a ordem, a direção decide por uma campanha de moralização voltada para o desmazelo, limpeza e preservação do ambiente e o estímulo à cordialidade entre os vizinhos. Uma série de regras de convivência passou a ser distribuída fazendo lembrar a onda de pacotes dos Atos Institucionais da ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Com tanta incerteza corria bochichos sobre a incompetência do síndico perante a invasão do apartamento. Este prédio era antigo com cerca de cento e vinte apartamentos e com um alto percentual de aposentados com poucos recursos financeiros. A insatisfação cresce por conta dos gastos extras que viriam para solucionar o problema da ocupação do imóvel. Essas pessoas pressionadas pensam em se organizar em grupo alternativo à direção condominial. Os ânimos exaltados provocam a radicalização dos extremos e o posicionamento contra o poder instituído.
Todos até então escondidos pelo anonimato mostram sua cara. Dentre eles surgiu um grupo de mulheres diversificado e folclórico que se projeta: velhas, velhinhas, velhotas e até velhacas que iriam participar do que se antevia como um “festim macabro”.
Do outro lado as lideranças oficiais apelidadas de Troika das Vagabas eram as eleitas como síndica, subsíndica e assessora, além do Conselho. A síndica Gabíria, a loura burra sequiosa de garantir renda com o provento da função, passou a se exibir para todos com o prestígio de chefona entre os funcionários da limpeza e portaria. Só mostrava abuso de autoridade com os subalternos, com seus pares era tímida pela escolaridade precária. Teve de ceder a liderança nas assembleias à advogada Filó Fala Macio, que em todas as reuniões salientava que não colocaria o seu título de bacharel em Direito na lama. Mulher ardilosa e correndo contra o tempo, pois sonhava projetar-se através dos contatos com a Prefeitura e outros órgãos oficiais.
Fala Macio com uma plateia de inquilinos novatos, posava de grande dama. Assim foi adquirindo aliados e admiradores. Era o trampolim para escapar de uma vida medíocre de cinquentona, mãe solteira de dois filhos dependentes. Depois de anos encontrou um lugar ao sol para se apresentar como “brilhante profissional” mesmo que fosse a um ambiente de ignorantes. Mas isso era o de menos, pois o que importava era a oportunidade para exercitar o Ego de Asas Gigantes. No vértice do triângulo vinha a “professorinha” Dedé, sem perfume e sem formosura, mulher contida, aparentemente educada, mas no convívio a mais boçal de todas as três. Uma trinca sem competência e com a arrogância de todos os tiranos.
Lili Carabina que era proprietária recente pensou em buscar apoio na maioria silenciosa que, mesmo sem presença ativa, crítica o status quo. Fez contatos com uma velha magra e elegante de nome Siloca. Parecia mais confiável que as fofoqueiras de plantão:
Carabina: Soube que ficou presa no elevador.
Siloca: Foi um horror! Fiquei presa durante uma hora com um calor insuportável e só com uma fresta para olhar e falar com as pessoas.
Carabina: Mas a síndica não veio dar solução? Os funcionários não tinham treinamento?
Siloca: Nem me fala da síndica. Estourei com ela. Fiquei furiosa e disse que era uma incompetente. Tá tudo cada vez mais errado por aqui. E ainda pior é a contratação de uma firma de segurança privada para nos proteger da invasora do imóvel. Esses seguranças são quase todos provenientes das milícias.
Carabina: Era sobre isso que queria lhe falar. Saber a sua opinião. Poxa, além de conviver em uma cidade fechada por muros e grades, mais essa... E, neste prédio pagar por proteção é demais da conta, literalmente. Temos de nos unir.
Siloca Não sou boa nas reuniões, pois falo o que penso. Sou bem pavio curto. Mas a gente pode falar com outras pessoas. Aguarde.
Pouco tempo depois desta conversa vários atos de sabotagem surgiram como agulha no palheiro: cocô e xixi dos cachorros por todos os cantos – dos corredores às escadas de acesso; lixeiras entupidas e fétidas; montanha de lixo jogado de propósito nos fundos do prédio; bate-boca entre vizinhos.
As surpresas não cessavam: a invasora não se intimidou em ser expulsa pela polícia por reintegração de posse e, abriu um processo contra o condomínio alegando injustiça em sua expulsão. Tão certa estava da vitória que tentou três liminares, mas não conseguiu documento comprobatório de propriedade. Apesar de montar uma fraude tosca deu prejuízo ao condomínio que teve de arcar com as despesas de advogado penal, o que iria pesar no déficit orçamentário.
A troika acuada marca uma assembleia extraordinária para decidir sobre os gastos com o processo judicial da invasão e novas medidas a serem tomadas. Vão usar argumentos baseados na cultura do medo alegando que em todo o bairro já existia invasões semelhantes e todos foram dominados por uma espécie de máfia de ocupação de apartamentos vazios. Nada tinha a ver com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e ninguém sabia de invasões particulares, mas o medo fez com que quase todos fossem convencidos pelo discurso terrorista de Filó Fala Macio. E foi nesse momento que propuseram uma solução engatilhada da contratação por sete mil reais ao mês, de três seguranças privados por dia, que no final das contas só serviram para abrir ou fechar o portão da rua. Um dinheiro que se esvaiu pelo ralo.
O trio de chefetes alardeava publicamente que o prédio servia de modelo à vizinhança da rua. Chefias perdulárias que com lábia pretendiam continuar gastando, mesmo com o risco de aumentar o rol dos inadimplentes.
A maioria silenciosa que paga tudo para não se amofinar começou a se surpreender com o tamanho da distância entre créditos e débitos dos balancetes mensais. Ao invés de apertar o cinto, o triunvirato propôs uma ajuda de custo à advogada Filó para assumir a “advocacia de partido” e acelerar os casos de cobrança dos endividados condôminos. Uma atividade de despachante que deveria ser assumida pela firma de administração do condomínio. Por essa e outras iniciativas é que se poderia falar em locupletar-se das oportunidades que os cargos ofereciam.
Todo o resto estava pendente: as sucessivas demandas por manutenção dos elevadores, o sistema elétrico (reforma do PC) e os interfones – medidas vitais para a segurança do prédio quando comparados à pantomima dos seguranças privados. Tudo levava a uma situação caótica de falência. Fez-se uma nova reunião onde a minoria habitual de frequentadores votou a favor do aumento de 35% nas cotas mensais para rolar a dívida com a firma administradora, que sustentava o rombo orçamentário.
Era óbvio que os dirigentes estavam ganhando por fora nos aumentos sucessivos para cobrir o rombo das finanças. O som de dentro faz presença nas noites insones dos mais preocupados. Um som assustador.
Siloca Pavio Curto marcou encontro com Lili e foi avisando que convocara algumas pessoas: Margot, de origem espanhola que mais parecia uma Moura Torta dos contos infantis. A cada vez que se dirigia às pessoas soltava palavras de baixo calão. Uma bruxa que fazia o terror de todos. Sua filha Nina ia pela mesma cartilha. E mais Zeca a Traiçoeira sempre confabulando pelos corredores e Bethânia, a Discreta:
Margot Escatô: Não vou pagar 35% a mais. Estamos sendo roubados. A trinca está com a periquita ardendo. Vou tentar fazer o pagamento dos boletos em Juízo.
Nina Obscena: E a advocacia de partido? Mi madre que mierda. Es la mierda del culo, es el partido del culo. Mierda muerta, mierda tuya, mierda de ellos. Abajo La Troika.
Lili Carabina: Não podíamos fazer um abaixo-assinado pedindo a renúncia da chefia?
Bethânia: Apesar dos abusos, pela convenção, não podemos pressionar para saírem. Temos de aguardar o período de novas eleições. Não temos saída só se aparecer coisa mais grave.
Zeca Holofote: O que pode acontecer de pior? Tem no meu andar um policia militar que quer ser síndico. Ele me disse que se a invasora fosse ao seu apartamento a receberia a bala. Acho que tem mesmo de cortar a cabeça de patifes. Aquelas vacas têm que cair...
Siloca: Acho que temos de agitar. Fazer pressão. Colocar gente nossa nas assembleias. Não me conformo com as “milícias”. É coisa de rico...
Lili fez sua avaliação do grupo e pensou: “É tudo tão patético. Melhor criar um bloco carnavalesco Deserdadas de Eva. Vou voltar à maioria silenciosa e ver no que tudo vai dar”.
Depois de meses os jornais noticiavam casos escabrosos de justiçamento de menores infratores, e que os justiceiros eram da classe média. Em matéria de justiça pelas próprias mãos, a mais sensacionalista foi a explosão de uma bomba no apartamento de uma das mulheres da Troika. Fato tão danoso que teve a intervenção de Jayme Amoroso, chefe da Segurança Pública do Estado que batalhou para abrir um processo na Operação Lava Jato. Mas não permitiram por se tratar de corrupção e roubo na esfera privada. Mas criou a primeira Unidade Pacificadora de Policiamento dos Prédios.
Após o impacto das medidas tomadas pelos órgãos públicos, e o clima de suspeição entre todos, surgiram os piadistas de ocasião que curtiam com a troca das “milícias” pela primeira UPP dos edifícios. Com as medidas pacificadoras podiam dizer que estavam mais perto da civilização.