JOAO CAPENGA E O AMIGO DESENCARNADO
JOÃO CAPENGA E O AMIGO DESENCARNADO
Alguém bate na porta. Uma, duas, tres vezes. Depois não bate mais. O silêncio volta a prevalecer, tanto dentro como fora daquele apartamento no segundo andar, estragado, desbotado, cheirando a mofo, a dejeto, a coisas velhas, a barata e rato, num prédio antigo de três andares.
Alguém que tivesse um mínimo de sensatez, que precisasse de um imóvel pra alugar, porém dispondo de parco ou nenhum recurso, não se arriscaria a morar naquele prédio em ruína, ainda que a moradia lhe fosse gratuita, prestes a desabar a qualquer momento.
A defesa civil já havia dito que a estrutura do prédio estava tao precária que quem alí morasse, corria risco de vida, podendo ser surpreendido por um iminente desabamento. Assim, as providências legais foram tomadas para lacra-lo.
Só que, se não podia entrar nele pela porta principal fechada, entrava por dois grandes buracos, cada um em lados opostos da porta, por onde alguns mendigos, vagabundos, tinham acesso ao seu interior.
Se sabiam ou não do perigo que corriam, não se importavam, e preferiam se arriscar em morar num imóvel inseguro e interdito pela defesa civil. Um desses mendigos era João Capenga. Assim o chamavam porque ele andava mancando, devido a uma perna ser mais curta do que a outra.
João Capenga era um dos poucos moradores efetivos do prédio. Por causa de sua deficiência, saía muito pouco e não ia muito longe. Andava um pouco e logo se cansava. Geralmente saía pela manhã pra pedir esmola, e antes do meio-dia já estava de volta.
Era viciado numa pinga. Com as moedas que recolhia da esmola, gastava quase tudo com o vício. Quase nao se alimentava. E chegava em casa, quase todos os dias embriagado, trazido pelos colegas de mendicância, que o deixavam na porta do prédio, muitas vezes o metiam num dos buracos e iam embora.
Bêbado, sem força física e mais a deficiência para subir as escadas, do térreo ao primeiro, e do primeiro ao segundo andar, ele dormia quase a tarde toda ali mesmo, no piso sujo daquele aposento térreo fétido; e somente na boca da noite, quando acordava mais ou menos sóbrio, soerguia-se com dificuldade e conseguia subir as escadas antes do anoitecer; porque não havia luz elétrica no imóvel, e ele precisava chegar no apartamento enxergando na penumbra, para então, acender uma vela ou candeeiro, na sala de visita, na qual ele fazia de quarto, e de novo deitava-se, em meio aquela luz fosca; e logo adormecia, ainda sob o efeito do acúmulo da bebida alcoólica consumida.
O motivo principal de quase ninguém ficar muito tempo no prédio, não era nem pelo iminente desmoronamento, mas sim porque o mesmo tinha fama de mal-assombrado. Corria a notícia da boca dos que alí habitavam, sobretudo os medrosos, que eram constantes, mais de noite do que de dia, as pisadas, as batidas de portas e janelas, ruído de utensílios domésticos, gritos e gemidos, vultos passando céleres de um lado a outro, causando arrepios e temores naqueles indigentes desvalidos e excluídos do meio social comum.
Só quem não temia os fantasmas era João Capenga. Acostumado a ouvir e ver espíritos, lidava com aquela situação presencial das entidades com muita naturalidade. No pouco tempo que ficava acordado, somente ele, pelo recurso mediúnico, conseguia interagir com uma ou outra alma desencarnada que também ali habitava, até porque, ali desencarnou e ali continuou morando, por apego demasiado ao imóvel, ou por qualquer outro motivo grave que o mantinha preso naquele prédio arruinado.
Era por isso que, quando alguém batia na porta do apartamento: uma, duas, três vezes, que apenas ficava encostada, e depois silenciava, sem bater mais, João Capenga nem se levantava, quando estava desperto, para saber quem era; posto que, já sabendo, via quando o amigo desencarnado traspassava pela porta; sim, porque era alí que ele morava antes de desencarnar, vítima de alcoolismo crônico.
Antes de João Capenga, outros quiseram morar no apartamento do segundo andar, mas nao conseguiam, porque o seu antigo proprietário, mesmo desencarnado, não arredava dali, e fazia de tudo pra que ninguém alí morasse além dele. Entretanto, quando João Capenga alí apareceu pela primeira vez, trazendo num saco entre os trapos, uma garrafa de pinga, ambos logo se entenderam, porque tinham o mesmo vício, exalavam as mesmas baixas energias, os mesmos miasmas viciosos; eram, por assim dizer, espíritos afins, gozando juntos, dos mesmos prazeres e vícios mundanos.
Assim, dois mundos distintos existiam e conviviam numa cumplicidade mundana; num, composto de almas encarnadas; noutro, de almas desencarnadas. O amigo desencarnado permitiu que João Capenga alí morasse com uma condição: que todos os dias ele trouxesse uma garrafa de pinga para consumirem juntos, aprazendo-se do vício que não conseguiam se livrar.
As energias de João Capenga, mesmo ruins, eram sugadas diariamente, por aquele fantasma que habitava o prédio em ruínas, a ponto dele viver quase sem força física, sem ânimo para andar, para pedir, para se alimentar, para sustentar o seu vício; devido ao estado de debilidade orgânica e psíquica, seu corpo só se sentia bem deitado; por isso, ele andava pela manhã, cumprindo a sua sina de mendigo, e quando se sentia exausto, voltava pra sua morada, quase sempre trazido pelos amigos também mendigos.
Durante o sono, o amigo desencarnado o levava em espírito, para o vale dos alcoólatras, onde suas energias eram igualmente consumidas por espíritos viciados. Um lugar tenebroso, de pesadas energias e vibraçoes fluidicas, cujo aspecto triste era de abandono, de degradaçao social dos espiritos que ali habitavam. Certa noite, em plena madrugada, quando ambos voltavam da região umbralina, tiveram uma surpresa desagradável. O prédio havia desabado. Mesmo debilitado, João Capenga conseguiu achar o corpo morto no meio dos escombros. Não entendeu porque continuava vivo num corpo idêntico.Quis entrar no corpo sem vida, mas o seu amigo não deixou. Perambularam pelas ruas desertas por algum tempo. Beberam juntos, sugando as energias de viciados encarnados. Por fim, João Capenga, agora desencarnado, antes do alvor do dia, voava com o amigo, pra sua nova morada no vale dos alcoólatras.
A bondade e misericórdia divina jamais desampara os seus filhos eternos, a despeito de muitas almas serem reincidentes nos defeitos e vícios, nas provas e expiações. A espiritualidade superior as consola, as orienta e as guia sempre pelas sendas edificantes. As sucessivas encarnações visam a correção dos erros, e ao mesmo tempo, preparam as almas ao alcance regenerativo, bem como a subsequente continuidade evolutiva que se estende ao infinito. Pelo livre arbítrio, cada alma consegue o seu ápice de melhoria, de desenvolvimento intelectual e sabedoria moral a seu tempo e hora.
Escritor Adilson Fontoura