A CAMPAINHA TOCA
 
A campainha toca, são dez horas da manhã, de um dia ordinário de verão, com o sol entre nuvens - graças a Deus, pois quando ele ousa aparecer, quem pensaria não estarmos em Macapá? Deve ser alguém pedindo um trocado, nos últimos tempos isto acontece em nove a cada dez vezes nestes chamados. Ou será um cobrador, ou, ainda pior, um assaltante?

Cauteloso, pergunto quem é. De dentro do pequeno abrigo dos medidores de água e luz, invisível por trás de um portão de aço, responde uma voz meiga, que pede um minuto de minha atenção. E lá vamos.

A pessoinha que me olha do lado de lá da porta surge, é só sorrisos. Tem belos dentes e profundos olhos verdes, cabelos longos e um olhar de uma imensa carência, que ela ainda desconhece. Quer emprego e pergunta se a patroa não precisa de babá, de faxineira ou se não tem algum idoso na casa para cuidar.

- Mas você tem que idade?
- Já estou velha! Tenho quase onze.

Não tem. Morador solitário e auto-suficiente, ainda não atingi a veneranda situação de necessitar de cuidados. A patroa não existe e muito menos qualquer criança.

- Ah, se pelo menos tivesse um cachorro, quem sabe um gato...

Mas não tem, informo-lhe já com o coração partido.

Ainda assim não desiste. Quer um copo d’água, pede para entrar, quer conhecer a casa.

- O senhor tem uma casa bonita - ela diz enfiando a carinha pela porta.

Está encantada de ver os convencionais aparelhos que a moderna eletrônica nos impõe, e sem os quais nos sentimentos completamente perdidos. Na verdade está fascinada pelo pisca-pisca que vem incessantemente dos displays, indispensável alerta para nos vigiar.

A menina é renitente. Não desiste nunca de chamar à atenção. Pede um copo d’água, mas bebe com o mesmo esforço de quem não estivesse com sede. Fico a observando naquele silêncio só interrompido pelo “glu-glu” da água que desce pela goela abaixo.

- Sou vizinha do senhor - de repente ela diz, ao terminar o copo d’água.

Limito-me a dizer “ah, é?”, completamente sem vontade de esticar conversa. Deu-se, então, de súbito, aquele interesse social que toda pessoa consciente carrega em estado latente. Perguntei:

- Você não estuda? Não está ainda muito nova para trabalhar?

Ela respondeu apenas a segunda parte, como sempre acontece quando incluímos duas questões numa mesma pergunta. Puxa vida, me surpreende a avalanche de informações. Nova ela não está não, novo é seu irmãozinho de apenas nove anos e que já ajuda o pai, retireiro num sítio próximo. É o pequeno quem traz os baldes vazios para o pai encher de leite. Mas, que pena, não ganha nada pelo serviço. Ela não, seu desejo é um só: quer ganhar dinheiro. Uma parte é para ajudar a mãe e com a outra ela pretende comprar um par de tênis que acabou de ver na loja mais chique situada no lado mais chique da avenida mais chique. Era o lado direito. Dito isto, ainda se esmera no cuidado de esclarecer que é o lado de quem sobe. Mais didático, impossível.

Insisto na questão do estudo. Sua resposta é curta e óbvia: não tem cabeça para isto, foi a professora quem disse.

Passo o resto do dia pensando nesta menina que representa todas as demais, vítimas da falta de esperança. Não sabem que a renúncia à cidadania e aos seus direitos sintoniza com a exclusão do conhecimento de suas vidas. Que destino aguarda estas pessoas no futuro? É provável que a quantidade de empregos se reduza drasticamente na proporção da procura e o sistema capitalista não terá meios de provê-los de trabalho.

Ela faz parte da gente que não entende de capitalismo e de globalização e que nem sequer pediu para nascer; estará marginalizada de qualquer oportunidade e dependerá exclusivamente de seus próprios meios para sobrevivência.

Eu disse sobrevivência. Porque, a partir disto, só Deus sabe. A responsabilidade de colocar novas pessoas no mundo faz-me lembrar.