A ARTE DE EMPINAR PAPAGAIOS
 
Sô Dercílio era um homem de pouca conversa, esporádicas ironias e muita autoridade. Nunca brincava com os filhos, nem com vizinhos e nem com dona Herondina na época do fumo de rolo, isto é, quase o ano todo.
Mas, depois do fumo vendido ele relaxava e estimulava os filhos a algumas brincadeiras, desde que ele aprovasse. Bater uma bola de meia no terreiro de Zeca Pedro nas noites de lua cheia podia (mas chutar coité, não). Pescar de dia era permitido, mas à noite só em sua companhia, mesmo assim com a nossa obrigação de carregar a latinha com minhoca ou cupim. Agora, gostar mesmo ele gostava era de ver a gente empinar papagaios.
Célio sempre foi mais habilidoso do que eu no grude, que era preparado com proporções exatas e quase alquímicas de água e farinha de trigo. Minha mãe não gostava nada do desperdício da farinha, pois a venda era longe e todo mundo tinha preguiça de ir lá e comprar. Assim, enquanto ele transformava um simples caldo numa massa consistente de amido grosso eu fazia o que mais sabia: escolher as cores, cortar as peças e combiná-las.
Imaginação para inovar não tínhamos. Assim, ao contrário da rica variedade geométrica que hoje se vê, nossos papagaios tinham sempre a mesma forma de um losango, quase quadrado, sustentado por uma vareta de bambu detalhadamente arredondada nas quinas e colada na diagonal maior, que tinha o sentido vertical. Isto eu sabia fazer, mas cortar as peças para formar o arco caprichado, amarrado à diagonal menor de bambu, também era tarefa dele.
O papagaio tinha que ter equilíbrio e os segredos estavam, parte nas asas, como se fossem nadadeiras de peixes e parte na imensa cauda, tudo isto confeccionado de tiras de papel seda de cores diferentes, enroladas e colocadas sob forma de argolas que se emendavam umas às outras à maneira de anéis olímpicos. E com o tempo e a prática de empinar papagaios fomos descobrindo que a posição em que se amarrava a linha na diagonal maior e vertical tinha de ser no seu terço superior.
Aquela jeringonça de cruzeta onde se enrolava a linha para depois soltá-la até o tanto que o vento pudesse arrastar também era obra nossa e cada qual se impunha às tarefas para realizá-las. Tinha de ser leve; e a madeira de caixote, de um pinho sem-vergonha de nodoso, servia a contento. Primeiro a gente serrava as peças da cruzeta, em tamanho razoavelmente longo para enrolar ou desenrolar muita linha com uma só volta, depois fazíamos os dentes em forma de V, caprichosamente entalhados com faca de cozinha e polidos com caco de vidro.  
Além disso, tinha os encaixes cortados com tão boa precisão que dispensava pregar e, então, fazia-se um furo pelo centro da cruzeta usando um longo prego, que lá em casa servia pra tudo, esquentado ao ponto de brasa. Depois montávamos a caixa externa, com dois furos centrais feitos pelo mesmo processo e aí era só passar um arame grosso enrolado em forma de corda de três pernas para lhe dar bastante rigidez, dobrando-o num dos lados da caixa e fazendo a manivela no outro. Pronto, era só esperar o vento a favor.
Sô Dercílio passava pra lá e pra cá investigando se fazíamos tudo certo, mas não palpitava. Finalmente, grude seco, manivela e linha enrolada na cruzeta e fixada na haste de bambu do papagaio fazíamos o teste do vento, mesmo que ele fosse tão fraco que não conseguisse balançar folhas de árvores. Bastava enfiar um dedo na boca e colocá-lo no ar. O lado que esfriasse mais indicava que o vento estava nesta direção e no sentido contrário. Só tinha graça empinar o papagaio, do ponto de vista de nosso terreiro, se o morro estivesse suficientemente afastado pra gente vê-lo subindo bem alto, coisa que também requeria certa arte.
Empinar papagaio não é coisa pra leigos, vão logo tomando ciência disto. Quando se está sozinho e não há ninguém pra segurá-lo enquanto damos corda, isto é, nos afastamos dele a certa distância para depois começar a puxá-lo em nossa direção, a solução é colocá-lo no chão. Acaba dando no mesmo. Depois disto tem uma série de trancos, com diversas intensidades, que imprimimos na manivela da cruzeta para encabeçar o papagaio. Assim que ele vai subindo, nesta fase de tentativa e erro – muitas vezes o papagaio embica em direção ao chão e não há outro remédio senão começar tudo de novo – ele vai encontrando correntes de vento cada vez mais poderosas e aí então não para de subir até que a linha se acabe.
Neste ponto o empinador de papagaio já não é mais o seu dono. Ele perde a propriedade para o vento que, dependendo de seu humor, faz dele o que bem quer, às vezes lindos movimentos de piruetas desordenadas e caóticas, outras descrevendo incríveis arcos no céu; ora ameaçando trazê-lo de volta ao solo numa autêntica queda de pombo-sem-asa, ora tomando o que resta da linha com tanta força que ele a arrebenta.
Um papagaio no ar se parece bastante com um peixe dentro da água e, se no caso do peixe parece haver algo que nos desfavorece que é o não reconhecer precisamente o tipo de peixe fisgado, no ar às vezes também confundimos o nosso com os demais papagaios. Isto mesmo: empinar papagaios não é uma tarefa solitária. As pessoas gostam de se juntar para fazê-lo e às vezes até mesmo para competir. Quem vai mais alto? Quem rabeia melhor? Qual o mais bonito? No nosso tempo questões como estas envolviam discussões tão acaloradas que se chegava às vias de fato, mas com um tipo diferente de briga. Os brigões puxavam o bico de seus papagaios uns contra os outros, entrelaçavam as linhas e quem fosse o mais forte, prevalecia. Isto era em Ubá Pequeno, córrego do Mata-Cavalos, onde esta violência era candidamente aceitável.
Depois, veio o cerol, assim como o mundo deixou de ser pacato e cordial. Sô Dercílio não ia gostar nada disto.

(In: TEIXEIRA, Cornélio Zampier. "ANOS DOURADOS NA TERRA DA MANGA UBÁ - Memórias de Minha Janela" - Editora Allis, 2014. 
ISBN: 9788586540707)

 
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 04/02/2019
Código do texto: T6566549
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