A borboletinha e o homem comum
Nada me interessa agora, senão o singelo bater de asas daquela borboletinha. Asas arquejantes, negras como a sombra e o vazio, que durante horas e horas passearam pelas paredes branquinhas daqui de casa.
Eu a observava atento e ela parecia que me devolvia o olhar. Estávamos os dois curiosos, tentando desvendar um ao outro. Eu tentando desvendar sua natureza de borboleta, e ela tentando desvendar a minha, de homem comum. Embora às vezes eu mesmo duvide da minha natureza de homem comum.
Queria mesmo era ser um gato, para pular de um prédio de vinte andares sem me machucar, ou quem sabe uma formiga, para enxergar o mundo enorme como ele é, ou até um porquinho-da-índia, daqueles que são criados e mimados por gente grã-fina.
Lamento dizer que sou um bicho triste, de espécie indefinida, sem motivo e sem bando, rastejando... rastejando... Durante alguns segundos, eu quis ser aquela borboletinha. Queria trocar de lugar com ela e voar pelas paredes de casa, mas vejam vocês, estou condenado a viver preso ao chão, e por isso sinto raiva.
Por isso, também, senti vontade de matar a borboletinha. Cheguei a pegar o chinelo para lança-lo. A pobrezinha roçou rapidamente em meu braço esquerdo e meus pelinhos se arrepiaram. Não tive coragem de matá-la. Quando dei por mim, a borboletinha já tinha me cativado, e eu era o principal e único responsável por ela nessa ocasião.
Sorri. Corri os olhos pelas prateleiras. A borboletinha voou próximo ao vaso e pousou no centro do crisântemo roxo de papel. Logo saiu. Acho que a pobrezinha percebeu o aspecto artificial da flor, que em nada lembrava o das flores que havia visto na natureza.
Pensei que assim como eu, ela devia estar com saudades do mundo lá fora, onde o céu é mais azul, além dos prédios e automóveis, além do tédio e solidão das grandes cidades.
Quem sabe estivesse com saudade de alguém, de outra borboletinha, talvez, ou de uma libélula. Outro dia, li numa revista que o comportamento sexual das borboletas é diferente do comportamento sexual das libélulas, pois enquanto estas últimas precisam fingir a própria morte para escapar dos abusos sexuais dos machos, as primeiras apenas fecham as asas.
Fico, então, pensando se aquela borboletinha não estaria em minha casa se refugiando de um macho abusador de sua espécie, dado a maneira como ela planava rapidamente.
Afinal, ela queria fugir ou se esconder? As fêmeas são difíceis de entender, inclusive as borboletas. Para sanar, então, a dúvida, abri a janela. Observei o céu, senti o ar batendo na cara, como a muito tempo não sentia. Sorri para o vizinho e recebi um sorriso de volta. Olhei para o moleque na bicicleta e ele me tocou a buzina.
Por um momento me senti mais jovem, mais feliz. A borboletinha roçou pela última vez em minha nuca e eu voltei a mim. O vulto saiu pela janela.
Minha querida amiga havia me deixado para sempre na solidão. Agora, me veio a ideia de escrever isso para eternizar sua existência, mas receio que ninguém leia.
O fato é que tenho boa memória e as coisas para mim não morrem facilmente. A borboleta está voando por aí afora, cumprindo seu dever de borboleta, e eu estou aqui, como sempre, cumprindo meu dever de homem comum.