Rotina
Como todas as manhãs acordei olhando para o teto. É nesta posição que normalmente durmo. Um sinal de que não houve muita atividade durante o sono. Às seis e meia vou para o banho. Perco lá pelo menos uns quinze minutos, de braços cruzados debaixo do chuveiro, fico repassando as atividades do dia enquanto a àgua quente tamborila a sua música sobre minha cabeça, escorre pelo corpo e segue seu rumo. Eu sei, desperdício de dinheiro e recursos naturais. Um crime.
Visto-me rapidamente porque a chaleira está no fogo. O cheiro do café sendo passado traz uma ótima sensação e a bebida quente e revigorante descendo pelas entranhas enche-me de ânimo. Estou pronto.
Dez minutos de caminhada até o ponto de ônibus é o único exercício que faço durante toda a semana. Um bom dia vizinho. Um aceno para o cara do açougue do mercadinho que acaba de abrir. Desvio-me de uma matilha de lobos famintos. Mentira! Na verdade um bando de cachorros esqueléticos sedentos para procriar e perpetuar a sina de cão sem dono.
No ponto, a fila está imensa. O ônibus está atrasado. “Só pode ser assalto” alguém diz indignado. Quando finalmente o ônibus chega está lotado.
- Estrada ruim - diz o motorista aos passageiros que o olham como se quisessem esganá-lo.
- Furou o pneu - reclama, com cara de quem comeu jiló no café da manhã.
Empurra aqui, empurra ali, alguns entram, outros, irritados, ficam à espera do próximo carro. Eu me misturo a massa apertada de gente que vai, aos solavancos, cada um ao seu destino. Tento cuidar em não me encostar muito nas pessoas, principalmente nas mulheres, mas, é praticamente impossível. Com uma mão seguro a barra do suporte com a outra o livro da vez, que, diante das circunstancias, será impossível ler. A Casa dos Espíritos de Isabel Allende. Gostaria de saber o que faria o explosivo Estebam Trueba numa situação dessas.
O tempo anda meio escuro. Com cara de chuva. Agora com mais espaço, posso ver pelas janelas do ônibus o vento fazer bailar as árvores. Uma sacola de mercado, dessas de plástico, foi alçada ao ar como se fosse um foguete. Divirto-me perseguindo-a com os olhos enquanto o vento faz dela um joguete empurrando-a cada vez mais alto no ar.
O interminável vermelho do semáforo finalmente da lugar ao verde e continuamos nossa jornada rumo as rotinas do dia.
Desço na estação tubo da Prefeitura bem a tempo de ouvir uma dessas louras esculturais, com um vestidinho amarelo curto e bem colado ao corpo, xingar um velho que acabara de passar bem ao seu lado.
- Seu porco, nojento, o senhor não tem vergonha?
- Nessa idade agindo dessa forma? - gritou a loura.
O vovô se fez de surdo e seguiu seu caminho. Fiquei imaginando o que teria sido, uma passada de mão? Uma frase marota? Adjetivos sujos? Provavelmente sim.
Mais uma caminhada até a entrada da garagem e descubro que esqueci o cartão de acesso de modo que terei de dar uma volta imensa até a entrada principal. O único consolo é que provavelmente deixarei meu número de identidade com a bela morena de cabelos escuro, na altura dos ombros, que atende a recepção do Delta Corporate Building.
Da estação de trabalho no décimo andar as janelas imensas presenteiam-me com uma bela paisagem. Vejo o Cemitério Protestante com seus cedros altíssimos, esguios apontando para o alto. Tenho a impressão de que ali dentro os ruídos são abafados e os sons do tráfego e das pessoas são sussurrados, embora o lado de fora esteja a distância de apenas um muro . Lá o silencio se impõem em favor dos que se foram.
Mais além é possível ver as torres de holofotes do Estádio Major Couto Pereira Lugar onde, como costumo ouvir por aqui, o verdão viveu muitas glórias e amargou muitas derrotas. Lugar sagrado para os Coxas Brancas.
Depois, lá no fundo, tem o cinza das montanhas da serra do mar convidando a mente a viajar, sentir o cheiro da maresia, correr pela praia, ouvir a música das ondas.
Por fim o dia começa, com o trabalho pingando e crescendo sobre a mesa até que eu entre no modo robô, tendo minha alma e minha mente capturadas pela tela do computador sem perceber que a manhã passou, a tarde caiu e quando finalmente se olha pela janela quem vem chegando é a noite. E então, é apenas o repetir do hoje no amanhã...