UM TERNO E ETERNO OLHAR SOBRE
A MINHA VIDA FAMILIAR DE ORIGEM...
 
 
 
Todos nós temos defeitos, mas quando a gente ama os defeitos diminuem, e quase se anulam, pelo poder do amor.
Como filha mais velha, e tendo casado aos vinte e dois anos, convivi cotidianamente com meus pais ao longo de toda a primeira metade de seus quarenta e seis anos de vida conjugal.
Vou relatar algumas experiências que ficaram na minha memória e no meu coração:
 
Houve um fato na infância de meu pai que certamente o marcou por toda a sua vida.  Ele tinha perto de três anos e seu pai falecera havia pouco tempo.  Estando ele na sala, viu seu pai na porta de entrada.  Feliz, foi chamar sua mãe, que se encontrava na cozinha, dizendo: “Mamãe, vem ver papai que chegou com uma moça com uma lâmpada na cabeça!”.  Vovó contava que suas pernas tremiam, e o menino insistia: “Vamos, mamãe!”.  E, quando chegaram, não havia mais ninguém.  “A senhora demorou tanto que eles foram embora!”, disse o menino apontando para a porta que estava aberta.
Muitas pessoas são especiais desde criança.  E nosso avô veio testemunhar a seu filho, sua fé em Maria, pois a imagem de Nossa Senhora das Graças, que papai tinha em seu oratório, vinha da família do nosso avô. É uma fé de família.  A novena rezada por papai, mensalmente, começou na década de 40, e Nossa Senhora veio buscá-lo após o último dia da novena, na madrugada do dia 28 de janeiro de l986.
Vou falar um pouco do amor conjugal que eles viviam.  Para mim o amor conjugal é um elo muito importante e necessário para a educação da família, já que a cumplicidade dos esposos dá segurança e referência ao crescimento e amadurecimento dos filhos.  As crianças precisam sentir que os pais se amam, mesmo com todas as diferenças e dificuldades que os cônjuges possam apresentar.  Por exemplo: meu pai era formado em Direito – minha mãe só tinha o primário.  Meu pai gostava de ler e escrever, era autor de peças teatrais – minha mãe escrevia alguns cartões para sua família e receitas de cozinha. Mamãe nunca trabalhou fora do lar, e não aceitava o relacionamento profissional entre homem e mulher.  Ela tinha muito ciúme das colegas do papai. Meu pai tinha necessidade de ir a cinema e teatro.  Nossa avó materna, então, ficava com os netos e eles iam à última sessão.  Ela ia apenas para acompanhá-lo, pois não resistia ao cansaço da lida do dia e dormia o filme todo.
Porém estavam juntos...  Quando a noite era fria, ela colocava o seu casaco preto de pele que comprara na Quitéria, uma empregada vizinha que vendia a prestação, e que por isso era chamado de “o casaco da Quitéria”.  Era um luxo só!
Nessas noites, todos os filhos ficavam escutando as histórias da vovó, muitas vezes de terror, com um dos irmãos, o Quincas, também pequeno e o mais levado, nos assustando pela janela.
Quando completei dezoito anos, papai me levou para conhecer como era um Teatro de Revista, gênero teatral muito apreciado por ele.  A vedete era a Nélia Paula, não sei se ainda está viva, mas era muito bonita na época.      
      
Havia muitas diferenças entre eles, mas havia respeito por seus sentimentos, pelo jeito de ser de cada um.  Havia afeto, carinho e sensualidade sem culpa.
Papai saía para o trabalho às onze da manhã, após almoçar, e mamãe se despedia dele na porta da saída, como se papai fosse viajar por muitos dias.  Eram beijos cinematográficos, abraços e promessas para a sua volta, à noite.  Só faltavam os beijos quando mamãe se aborrecia e ficava de cara amarrada.  Papai tinha uma paixão pela atriz mexicana Maria Antonieta Pons, e não escondia.  Ela uma vez se apresentou ao vivo no ex-cinema Santa Alice, no Engenho Novo, e eles foram assistir.  Papai ficou muito animado e mamãe reagiu com a sua cara amarrada.  Ele tinha muito medo da cara amarrada da mamãe e fazia de tudo para que as pazes fossem feitas.  Era dificílimo papai fazer alguma coisa que mamãe não gostasse.  Inúmeras vezes papai, com sua pele clara e sensível, foi trabalhar com manchas roxas no pescoço ou no rosto, dos beijos por vezes mais intensos que recebia de mamãe.  Mas ele não reclamava, devia até gostar do seu jeito de ser.  Mamãe era bonita e fogosa – não tinha trato, por não dispor nem de tempo nem de dinheiro, mas isso não importava – ela vivia muito bem a própria sexualidade.  Muitas vezes, ela o esperava deitada na banheira, com a luz apagada (somente o gás aceso) e a porta semi-aberta.  A água sem sais de banho, mas os olhos cheios de convite.  Quando papai chegava de terno e gravata, do trabalho, ela o puxava para dentro da banheira para beijá-lo.  Quatorze filhos, mas tinham tempo um para o outro.  Não precisavam falar de sexo com os filhos, já que o viviam com naturalidade, sem vergonha do amor que sentiam um pelo outro.
 
Os trabalhos na nossa família eram divididos: a cozinha e a roupa eram da mamãe – o colégio, seu acompanhamento, as doenças e remédios eram do papai.  Vejam só: quatorze filhos diferentes para amar.  Como fariam? Que tarefa difícil!...  Mas eles cuidavam do filho que estivesse mais necessitado naquele momento, fosse por doença, fosse por alguma dificuldade nos estudos.  Papai estudava latim, ou matemática, ou outra matéria que se fizesse necessária, para ensinar ao filho que ficasse em segunda época, já que não podia pagar professor particular.  Ele tinha a capacidade, a sabedoria de perceber as diferenças e aceitá-las.  Ele respeitava a individualidade de cada um.  Ele me preparou para o Colégio Latino Brasileiro, e por isso eu entrei no primeiro ano adiantado, pois já sabia com seis anos contar até 1000.  Quando entrei para a Faculdade, e quando participei de alguns concursos públicos – pois precisava começar a trabalhar para ajudar em casa –, foi também ele quem me preparou.  Aliás, papai era um professor nato, tinha muita didática para nos ajudar nos estudos e, principalmente, zelava pela ortografia e gramática, dizendo que os filhos falavam em dialeto, o dialeto “Cabuçuano” (referência à rua em que morávamos).
Eu me lembro, como filha mais velha, das épocas de mais dificuldades financeiras.   Papai colocava na janela do quarto que dava para a rua Cabuçu: “Ensina-se Contabilidade”.                                                                Em l950, eu estava com quase dez anos e mais sete irmãos menores, num apartamento de dois quartos.  Foi quando ele abriu um curso de admissão, de preparação para o ginásio que funcionava no quarto menor.  Haja criatividade!...
 
Ele tinha uma máquina de escrever portátil manual, onde datilografava suas peças teatrais, que foram quatorze.  Era o único bem material que possuía.  Não tínhamos carro, nem televisão, nem aparelho de som e nem telefone.  Algumas vezes eu o via saindo com a sua máquina para depositá-la no Penhor da Caixa Econômica.  E eu, bem jovem, já ficava preocupada com aquela situação.  Mas ele não se queixava nunca.  Ao contrário, fazia uma autogozação, exclamando em tom alto:  “Eu sou o professor que não tem aluno”, “o advogado sem causas”, “o escritor de peças não representadas”.  Era sua forma de, com seu costumeiro bom humor, lidar com as agruras da situação, mas a mamãe não gostava desta sua reação. Ela mesma, às vezes, vendia jornal e garrafas vazias na quitanda para ajudar a melhorar a janta.  Até a pequena pensão da avó paterna, muitas vezes, funcionava como cartão de crédito, adiantando o dinheiro até o pagamento do salário do mês.  Algumas vezes, seu único irmão também o socorria com algum empréstimo.  Mas papai nunca deixou que usássemos roupas de outras pessoas, nunca aceitou desconto por ser pobre, nunca apresentou atestado de pobreza em nenhuma situação.  Era um santo orgulho, pois dizia:  “Meus filhos, há famílias mais pobres e que precisam mais e não devemos ocupar tal vaga”.
Papai e mamãe sempre foram celebrativos.  Os natalícios dos quatorze filhos eram festejados da seguinte maneira: o dia começava com a missa participada por ele na intenção daquele filho ou filha; roupa nova para o aniversariante da cabeça aos pés, com direito a retrato na “Foto Quesada” do Méier; visita à casa da avó paterna para sua benção e à noite, bolo e docinhos com refresco (muitas vezes, o famoso “Q-suco”).  Isso era norma para todos os filhos e para todos os anos.  As fotografias estão aí para comprovar.  Da mesma forma, a primeira comunhão de cada um era realizada em separado, pois cada filho era único.
E os Natais?  Ah, os Natais!  Com direito a cartinha para o Papai Noel, sapatinho no fogão e os presentes que ninguém via chegar, mesmo quando a gente crescia e prestava atenção.  Era um mistério esse Papai Noel...  Houve um ano que o irmão mais levado,o Quincas, já citado, com oito anos aproximadamente, resolveu esperá-lo.  Foi uma noite muito difícil para o nosso pai, porque teve que ficar acordado até as quatro horas da manhã aguardando que o filho curioso e ansioso por ver o Bom Velhinho não resistisse ao sono e adormecesse.  Só então foi possível colocar os presentes. E naquela manhã todos os irmãos queriam saber como havia sido o seu encontro com o velhinho de barbas brancas.  E ele decepcionado dizia, meio sem jeito, que não conseguira vê-lo, pois o sono fora mais forte que  ele.
A Páscoa era vivida apenas no sentido religioso, com a participação nas celebrações da Semana Santa.  Eu me lembro que Papai me levava para visitar sete igrejas diferentes na quinta Feira Santa.  Era um costume, um rito que acabou com o Concílio Vaticano II, em l963.  Nada de coelhinhos, ovos de páscoa e passeios para aproveitar os feriados.  A avó materna, minha madrinha, me presenteava com um vestido branco para usá-lo na missa de Páscoa, e o almoço de domingo era mais solene que o habitual.
E os carnavais?  Sempre tinha uma fantasia simples, ou uma roupinha nova, confete, serpentina e lança-perfume, com direito a uma visita – a caráter – isto é, todos fantasiados, à casa da avó paterna. Um passeio no Engenho Novo, ou no Méier, ou mesmo de bonde até a cidade.  E o próprio bonde era um bloco de carnaval.  Como eu gostava!... 
Ia me esquecendo das festas juninas.  Sempre havia fogos no final do mês, depois do pagamento, para a festa de São Pedro.  Para Santo Antonio e São João não havia nada  – o salário ainda não chegara – e eu ficava decepcionada, porque eram as mais festejadas na rua. Papai comprava rodinhas, estrelinhas, chuveiros de prata e de ouro.  Mas mamãe só gostava das bombas, cabeça de negro e busca-pé, vejam só!...
 Ah, os balões!...  Ele os fazia junto conosco e os soltava, muitas vezes escondido, quando a pressão do governo era grande.  Era muito bonito e emocionante vê-los sumirem no céu de tão alto que subiam.  Era mágico, muito mágico... Balões de uma folha, com seis gomos e uma bucha de parafina, que pareciam no céu estrelinhas levando os nossos sonhos e as nossas esperanças.
Mas todas essas festas, essas celebrações, eram episódicas se comparadas com a festa maior, mais presente e familiar: as missas dominicais – que papai nunca deixava de participar com todos os filhos.  A participação de mamãe era com o coração, espiritualmente, pois tinha que preparar o almoço (macarronada com carne assada).  Naquele tempo não havia missa aos sábados e nem domingo à noite.  Nossas roupas novas eram confeccionadas especialmente para irmos à missa (com mangas e comprimentos adequados) e usadas principalmente nesse evento maior.  Era um testemunho muito forte de fé e vida familiar cristã que nossa família dava.  Íamos a pé pela rua Dona Romana até a Igreja Nossa Senhora da Consolação e Correia.
Lembro-me, também, de um outro fato relacionado à mamãe.  Todas as tardes, após o almoço, ela juntava a enorme louça suja na pia, entrava no quarto com todos os filhos, fechava a janela e a porta.  E assim, era como se a noite chegasse, e todos dormiam quisessem ou não.  Era preciso descansar para enfrentar o segundo turno do dia.  E era bom para as crianças, também.  Uma vez meu irmão não querendo dormir, pisou sem querer a cabeça da minha boneca alemã de porcelana, que estava aos pés da sua cama, quebrando-a em muitos pedaços, porque estava muito escuro no interior do quarto.  Lembro-me que chorei muito...  Essa rotina sábia é também as das camponesas que descansam após o almoço, pois o dia começa muito cedo.
Há ainda, uma outra passagem interessante.  Foi quando nosso pai foi entrevistado por uma criança durante a missa da catequese, num segundo domingo de agosto, dedicado aos pais:
-Para o senhor, o que é ser um bom pai?
-Um bom pai é aquele que dá o melhor que pode a seu filho, em cada momento. Um exemplo bem simples para você entender: se um pai pode dar pão com presunto e o faz, ele é um bom pai. Se ele só pode dar pão com manteiga, ele também é um bom pai. Mas se ele apenas pode dar pão duro, ele é, também, um bom pai. Resumindo, um bom pai é aquele que faz o máximo que pode, em cada momento.
-Por que o senhor teve tantos filhos?
-Foi a maneira mais fácil que eu e minha esposa encontramos para viver.
Enquanto escrevia estas linhas fui interrompida por uma de minhas irmãs, ao telefone.  Partilhamos então alguns momentos, e aí tive uma idéia: se cada irmão escrevesse algo de suas experiências pessoais de família, poderíamos até ousar editar um livro cujo título seria: “As memórias de nossa família” que certamente conteria as cartas escritas pelo nosso pai às duas filhas que moraram por um tempo em outro Estado. Não sei se cometo algum sacrilégio, mas penso, também, que o título poderia ser: “A Boa Nova de meus pais narrada por seus quatorze filhos”.
Para finalizar agradeço mais uma vez a Deus a minha história: não apenas meus pais e meus irmãos, mas também meu esposo, que vindo de longe – Portugal – e de uma família pequena, se adaptou tão bem ao barulho, agitação, confusão e maravilhas de uma grande família, da qual ele foi, além de genro e cunhado, um irmão mais velho que participou do crescimento dos menores, porque quando começamos a namorar, em 1960, meu irmão caçula tinha apenas dois anos.  
Agradeço a Deus, também, os meus quatro filhos, duas noras, um genro, quatro netos e mais um a caminho, nestes quarenta e um anos de vida matrimonial.

E que nossos pais continuem intercedendo a Deus por cada um de nós e nossas famílias, para que, um dia, estejamos todos juntos
na Bem-Aventurança eterna. Amém.        

       Maria Terezinha Soares Domingues, em 2004
 
   
 

 
 
 


 
 

 
    
    
   

 
Terezinha Domingues
Enviado por Terezinha Domingues em 31/01/2019
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