________"OS FILHOS DA LAMA"


Eles são muitos. São homens, mulheres, jovens, crianças. Eles têm idades variadas, ocupações diferentes, famílias diversas. São pessoas comuns que acordam de manhã e esperam a noite chegar. São cidadãs e cidadãos brasileiros tentando reencontrar seu lugar no mundo. São iguais a todos, com um diferencial: viveram, e ainda vivem uma prova do inferno aqui na terra.

Em novembro de 2015, estas pessoas foram pegas de surpresa, envolvidas num repente por um barulho ensurdecedor e uma gigantesca “nuvem de poeira laranjada”, nas palavras de um dos sobreviventes da tragédia de Mariana. Num piscar de olhos, o mar de lama descido de uma barragem rompida revirou suas vidas pelo avesso: perderam terras, moradias, animais, amigos e parentes.

No calor das emoções, as vítimas receberam homenagens, doações, solidariedade, lágrimas de comoção. Por algum tempo mereceram destaque nas mídias, tiveram seus dramas pessoais expostos ao País e ao Mundo. Quem poderia ignorar tamanha desgraça? Os que acompanharam o desastre, se indignaram de verdade, execraram multinacionais, rogaram pragas em governos — nos passados e nos vigentes à época — criticaram órgãos ambientais, especularam sobre multas e fiscalizações. Mas...

Mas passado o primeiro impacto do episódio que devastou vidas e enterrou mortos, o assunto virou esquecimento, como sempre acontece nesse País de memórias curtas. A vida seguiu, porque novos temas já marcavam as pautas públicas, e as vítimas de Mariana foram relegadas à milésimo plano. De vez em quando, apenas muito de vez em quando, alguma notícia aludia ao desastre de novembro de 2015 que deixou seu rastro de destruição... A vida tomou seu rumo.

Diante da catástrofe de Brumadinho, se lembraram de checar como estão vivendo as vítimas de Mariana. Foram saber de suas vidas, indagar de seus traumas. E o que ouviram foi sobre o quase nada obtido desde a época da tragédia: as vítimas continuam sem suas casas, sem suas terras, sem as indenizações, sem suas vidas. Moram em espaços alugados, recebem valores simbólicos, e o que mais choca: são alvos de preconceito, suas crianças sofrem bullying na escola, e têm que conviver com rótulos como “Filhos da Lama”, atribuídos por vizinhos que torcem para que retornem ao lugar de onde vieram — embora sair de seus lugares não tenha sido exatamente uma escolha.

Passados alguns anos, apenas alguns, a tragédia se repete em Brumadinho, com o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão. O saldo ainda não pode ser avaliado, mas já se sabe, fechará na categoria "devastador". Novamente, Minas, o Brasil e o Mundo convivem com a realidade de outros Filhos da Lama que sobreviveram — ou sobreviverão, pois como eles mesmos se convencem, “A esperança é a última que morre”.

E estas vítimas de Brumadinho? Terão que percorrer o mesmo árido caminho dos desamparados de Mariana? Aguardemos... No mais, sob efeito dos relatos remanescentes de Mariana, estarrece, assusta conhecer mais a fundo a verdadeira essência de certos corações. Não se sabe qual dor é maior: a de passar pela grande tragédia ou, após o inferno de experimentá-la, ter que conviver com semelhantes desprovidas de qualquer senso de humanidade. Hoje, me sinto um pouco pior que ontem. E penso: algumas coisas sobre o ser humano (nem todos, me consolo) seria melhor a gente nem saber.