Procura-se um incendiador de porcos
 
Há milênios atrás os povos primitivos só comiam carne crua. Certo dia um inesperado incêndio no bosque onde criavam porcos queimou os que lá estavam. Depois de experimentar a carne e gostar do que provaram ficaram sem saber exatamente o que fazer. Sempre que queriam assar porcos para comer incendiavam um bosque. O tempo passou e o líder do grupo – sim, já nomearam um – achou que os porcos nunca ficavam no ponto certo. Ora muito queimados, ora crus demais.
A comunidade cresceu e as queixas aumentaram. O líder instituiu então uma máquina administrativa que se aperfeiçoou no gerenciamento de assar porcos em larga escala, para deixar todos felizes. Para alimentar a máquina era preciso contratar gente, de preferência pessoas ligadas ao líder. E a máquina cresceu. Chegou a ter milhões de pessoas. De vez em quando o sistema não funcionava direito, perdia-se muitos porcos e muita floresta e as pessoas se queixavam da sua ineficiência. Era preciso fazer uma profunda reformulação em seus princípios.
Mas então o líder já não agia sozinho. Tinha os sindicatos disso e daquilo e todos queriam mais do que um pedaço de porco assado; queriam cargos na máquina administrativa. Como se tratava de um governo progressista e popular, nunca faltavam vagas de emprego. E tome de reuniões anuais: congressos, seminários, jornadas, conferências, workshops. Muitos relatórios. Pouco resultado prático. E então se faziam novos congressos, seminários, jornadas, conferências, workshops e relatórios. E nada mudava.
Contrataram especialistas de país vizinho acostumado a lidar com porcos e incendiadores. Sua missão era procurar as causas dos fracassos. Depois de muita pesquisa e novas rodadas de seminários, conferências e congressos surgiu o relatório final em cujas conclusões constava que: 1) os porcos eram muito indisciplinados e não ficavam no lugar que deveriam ficar; 2) a natureza do fogo é muito variável e ele é difícil de ser controlado; 3) as árvores estavam muito verdes e a terra muito úmida; 4) as previsões meteorológicas sempre erravam o lugar, a quantidade de chuvas e o momento exato de ocorrência. O relatório serviu muito às suas finalidades: explicar o fracasso, mesmo com argumentação confusa e desalinhada. Mas, saída da boca de especialistas famosos trazidos de país vizinho só restava confiar nela. Enfim, os insucessos se deviam exclusivamente à complexidade do sistema.
Não havia uma solução simples, nem imediata. O clamor do povo, insatisfeito com os problemas, levou a organização a montar uma estrutura paralela ao seu governo. Para implementá-la foi necessária a criação de novos cargos de confiança, todos na área de incendiadores. A organização foi feita por zonas (sul, norte, oeste – onde havia bosques), por turnos (noturno, diurno, matutino, vespertino) e sazonais (principalmente outono e inverno). Foi criado um Departamento Jurídico só para distinguir exatamente a fronteira entre outono e inverno, se era exclusivamente pelo critério da temperatura média ou do número de folhas caídas.
E então foram necessárias duas novas Secretarias para abrigar as leituras dos termômetros e a contagem das folhas. Também foi necessário criar um curso superior para formação em Porcologia e outro para Florestas Incendiáveis. Tudo com as devidas siglas. A Secretaria Especializada em Porcologia foi denominada de SEPORINC e assim por diante. Quanto mais eram os porcos consumidos, mais necessidade de criar divisões na SEPORINC. Ela chegou ao número de 100, pois a cada mil porcos era necessária uma divisão para fazer os controles.
Uma Inspetoria de Reforma também foi instalada, com 380 funcionários. A ela cabia, além da organização de eventos, a formação de novos bosques. Para treinamento adequado firmaram convênios com duas universidades, uma na Flórida perto da Disney e outra ao lado do restaurante Guy Savoy, em Paris. Sobrando tempo, estudavam madeira, sementes, árvores, fogos e novas ideias operacionais. Era preciso saber a profundidade exata do buraco onde os porcos deveriam cair sem se desintegrar.
Depois de dois anos retornavam, agora com a missão de multiplicadores de conhecimentos. Formavam pessoas que iriam preparar novos professores que, por sua vez, seriam encarregados de preparar novos especialistas. O nível de conhecimento progrediu de tal sorte que foi possível determinar, com precisão, a velocidade ótima do vento noroeste para que o fogo fosse lançado no tempo certo de queimar os porcos soltos na floresta e na temperatura de 47,85ºC. Foi escrito um artigo a respeito, que recebeu muitas críticas conspiratórias. Eram os cientistas de direita agindo para tumultuar os estudos avançados. Como era necessária uma aliança para que a votação prosseguisse todos concordaram em adicionar uma recomendação direitista: era preciso colocar ventiladores para mudar a direção dos ventos em dois graus.
Cinquenta e sete séculos e oitenta e dois anos já tinham se passados nessa grande conquista civilizatória. O progresso tinha sido gigantesco. Um dia, baseado no regime de cotas que exigia o preenchimento de cargos de estagiários com 10% de cegos, um deles foi contratado como acendedor, com especialidade em vento sudoeste, turno matutino e mestrado em verão moderadamente chuvoso. Ele não podia incendiar bosques porque era cego. Por isso passava o dia pensando. Até que um dia ele teve uma ideia: primeiro se matava o porco, depois era limpo e cortado em tamanhos certos. Finalmente, as partes eram postas sobre uma espécie de grade metálica sobre braseiros. Não eram necessárias chamas. Bastava o calor para colocá-las no ponto certo.
Quando o Superintendente de Assamento tomou conhecimento do fato chamou-o para uma entrevista reservada. O estagiário chegou lá sem uma folha de papel nem nada. Só com seu singelo e resumido raciocínio de como assar um porco sem burocracia.
     - O senhor enlouqueceu? Quem pensa que é para propor uma coisa que vai deixar milhões de desempregados? Na sua família não existe alguém, pelo menos um, que seja especialista como acendedor, projetista de pocilgas de quatro andares, maquinistas, aromatizadores? Como ficarão nossos convênios com as universidades de Cuba, União Soviética, EUA e França?
     - Mas, senhor ...
     - Cale-se! O que o senhor diz não tem qualquer fundamento científico. Não há método algum nas suas ideias. Não há uma bibliografia atualizada. 
     - O senhor não vê nenhuma utilidade nisso?
     - Em absoluto, não. O que queremos é reduzir o custo dos estagiários e um estudo profundo sobre a análise do programa de reformas de assamento. E para que o senhor não fique desempregado, vá procurar o Instituto dos Cegos e ver se há alguma bolsa por lá.

 
Cabisbaixo, o estagiário foi procurar outro emprego. Dizem que o encontrou numa empresa estrangeira que publicou o anúncio: “Precisa-se um incendiador especializado em soluções simples”.

(Esta crônica é uma adaptação livre do artigo “Juicio de La Escuela” por F. T. Cirigliano - Buenos Aires, 1976.)

 
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 24/01/2019
Código do texto: T6558255
Classificação de conteúdo: seguro