A salvação da humanidade não vem de onde a gente espera
A tecnologia é uma aliada formidável para pessoas com o senso de localização bagunçado como o meu. Ainda assim, praticamente todo mundo que usa GPS tem uma história para contar sobre o dia em que se meteu em encrenca por causa dele. Esta é a minha.
Eu estava dirigindo em uma cidade que já visitei várias vezes, mas que possui vários cantos e recantos que ainda desconheço. Como o meu destino do dia era um espaço para o qual estava indo pela primeira vez, liguei o GPS, como qualquer pessoa que não sabe usar uma bússola e possui um smartphone.
O lugar não era distante de onde eu estava hospedada, 15 minutos no máximo sem considerar possíveis contratempos, e tudo ia muito bem até a voz tecnológica me mandar para um atalho. Eu não sabia que era um atalho, parecia uma rua perfeitamente normal até começar a subir e atravessar ruazinhas estreitas com casas simples. Me perdi em algumas curvas e fiz alguns retornos complicados (fazer manobras com marcha a ré engatada em espaços diminutos com certeza não está na minha lista de coisas preferidas), mas o GPS dizia que eu estava a menos de 10 minutos do destino e, apesar de estar um pouco nervosa, ainda não tinha perdido a esperança de achar a saída daquele labirinto de morros e ruas estreitas. Bem, pelo menos não até dar de cara com o maior e mais íngreme de todos eles.
Respirei fundo, pois já tinha percebido que estava num bairro que cumpria todos os requisitos para ser considerado “perigoso” e, mesmo que fosse uma manhã bem iluminada e houvesse um fluxo constante de carros, todo tipo de pensamento paranoico passa pela cabeça de uma pessoa criada por pais de classe média e subitamente perdida “no morro”. Engatei a primeira marcha e pisei fundo no acelerador para pegar o embalo necessário para subir. Quase não acreditei, mas estava subindo. De repente, tinha um pequeno caminhão parado no meio do morro, bem na pista que subia. Imitei os carros que desaceleravam um pouco e iam para a pista contrária, e o carro que vinha descendo fez a gentileza de esperar quem subia passar. No entanto, alguma coisa deu errado e eu perdi velocidade demais e não consegui continuar subindo. O carro morreu algumas vezes, e eu continuava perdendo a briga com o acelerador e a embreagem.
Resumindo: eu estava na contramão de uma rua estreita subindo um morro íngreme demais num bairro desconhecido e potencialmente perigoso, começando a acreditar que eu havia batido em alguma coisa e estragado alguma parte do carro nas minhas manobras anteriores. Nesse momento, eu já estava mais do que apenas um pouco nervosa. Mas no fundo eu sabia que a única opção para sair daquele impasse era engatar a marcha ré, descer o morro todo e começar a subida do zero. Inclusive, era isso que o motorista do pequeno caminhão pretendia fazer, já que, como me contou, o veículo estava com a carga pesada demais e não conseguiu terminar a subida.
Não sei como, mas consegui descer o morro em marcha ré, na contramão, sentindo que era uma motorista terrível, e que meu senso de localização era ainda pior, e que eu devia ter desistido daquele caminho antes que fosse tarde demais. Cheguei à base, peguei embalo e tentei subir novamente, mas o carro não foi. Para completar minha sensação de estar protagonizando o recebimento do prêmio de pior motorista do ano, o homem que dirigia o caminhão perguntou se eu tinha certeza se estava com a primeira marcha engatada (sim, eu também não sei como as coisas chegaram nesse ponto).
Eu poderia continuar divertindo (ou apavorando) vocês com minhas tentativas de subir o morro com um carro que e acreditava estar completamente destruído (pensando agora, talvez o perigo seja eu ter um carro, mas essa é uma reflexão que veio 3 anos e 20.000 km atrasada), mas é só mais do mesmo. O que aconteceu quando meu desespero já atingia níveis alarmantes foi que um morador local, um rapaz de pele bem clara, bermuda que deixava aparecer metade da cueca e boné vermelho, que já tinha me dado instruções sobre o caminho correto alguns metros atrás, reapareceu perguntando se eu queria que ele subisse o morro para mim.
Minha mente entrou em pane por alguns segundos, sem responder. Agora, olhando para a minha aventura com alguma distância e perspectiva, posso problematizar a situação por vários ângulos. Por um lado, já é tão difícil romper os estereótipos de que mulheres são motoristas ruins e o outro estereótipo de que somos donzelas em constante perigo, que eu não queria abrir mão do restinho de dignidade e independência que guardava em minhas mãos trêmulas presas ao volante. Por outro, a reflexão que deveria ser a mais óbvia: não é sensato permitir que um desconhecido, um HOMEM desconhecido, de um bairro que pessoas de classe média evitam, entre no meu carro. Talvez minha breve pane signifique que, em algum grau nada consciente, minha mente estava refletindo sobre essas questões. No entanto, minha tendência nada saudável de atingir facilmente o ápice de drama havia me deixado desesperada o suficiente para aceitar a ajuda.
Eu gostaria de ser poética e dizer que havia alguma coisa na forma como ele falou, na forma como agiu ou na aparência que me fez sentir que podia confiar nele. No entanto, não é assim que as coisas funcionam na vida real. Ele poderia estar vestido, falando e agindo dessa mesma forma e ter feito alguma coisa terrível. Ou, ainda, podia estar vestido, falando e agindo de uma forma completamente diferente e ser um risco ainda maior. Nenhuma dessas coisas é garantia de nada. Também gostaria de dizer que foi meu instinto que sentiu que podia confiar no rapaz, mas, pra ser sincera, acho que o desespero tem bem mais a ver com a resposta que acabei dando.
Mudei-me para o banco do carona e observei-o entrar no carro e regular o banco. Um conhecido dele passava pela calçada, um rapaz alto, bem magro, de pele escura e cabelos penteados para cima e com um ar jovial. Ele também estivera observando minha situação e começou a desafiar o rapaz, duvidando que ele fosse de fato conseguir fazer o carro subir.
Racionalmente, não faz muito sentido, mas as brincadeiras dos dois rapazes “do morro”, um dos quais dirigia meu carro comigo dentro, ajudaram a tranquilizar um pouco o meu espírito. “Se eles conseguem rir e fazer piadas com essa situação, talvez exista uma possibilidade de ficar tudo bem”, pensou meu cérebro desregulado.
A primeira tentativa não deu certo, e ele desceu o morro em marcha ré como eu tinha feito instantes atrás, xingando o carro da frente que nos fez perder velocidade. Eu sorria timidamente, perplexa com toda a situação, enquanto ele parecia encarar a subida como um verdadeiro desafio. Quando chegamos na base, o rapaz alto continuou a chacota, perguntando se teria que entrar no carro e subir o morro ele mesmo. Mas a segunda tentativa foi melhor sucedida do que a primeira, e fomos ganhando velocidade e terreno. A essa altura, a parte do meu cérebro responsável pelo senso de autopreservação já tinha desligado completamente, e eu só estava feliz por estar subindo.
Quando chegamos ao topo do morro, o rapaz desligou o carro e me deu instruções para seguir em frente sozinha. Agradeci infinitamente e perguntei a ele o quanto lhe devia. Ele recusou prontamente, e continuou recusando quando insisti. Não sei se o ofendi, não sei se meu movimento tirado diretamente do manual de boas maneiras da classe média foi o melhor que poderia ter feito, mas foi a única coisa em que consegui pensar. No fim, ele só saiu do carro e me desejou bom-dia simpaticamente. E voltou para o ponto onde sua vida estava acontecendo. A pé.
Quando cheguei ao meu destino, que realmente estava a poucos minutos depois daquele morro, ainda não consegui refletir sobre a magnitude do que tinha acontecido. Mas agora, de longe, muitas coisas me assombram. O risco potencial que corri, sim, tenho plena consciência de que ele é real, mas, na verdade, o que me destruiu foi pensar no peso injusto dos estereótipos e de todas as situações sérias e reais e das situações manipuladas também que fazem com que seja normal, sensato inclusive, ter receio de interagir com várias pessoas em vários contextos e, especificamente, com essa pessoa que se provou tão altruísta e simpática.
Uma das coisas em que pensei foi que não odeio os homens. Há quem pense que todas as feministas odeiam, e não vou mentir, algumas odeiam mesmo, mas não eu. Eu tenho medo dos homens. De todos eles, a princípio, pois não tenho como saber de antemão qual tem intenção de me machucar e qual não. Ou qual não tem a intenção de me machucar hoje mas pode vir a fazê-lo depois de uma convivência mais longa. Mas, mais do que isso, me entristece viver num contexto que alimenta e justifica esse medo.
Outra questão é que esse medo que nós mulheres desenvolvemos se mistura com os estereótipos e acaba atingindo alguns homens mais do que outros. Um homem pobre, um homem negro, um homem tatuado, morador do bairro X, que usa a roupa Y, é socialmente entendido como mais “perigoso” do que o homem rico, branco, de olhos claros e carro esportivo. Existe uma inclinação social maior a aceitar a ajuda de um determinado tipo de homem. Mas isso não é garantia de nada e, de novo, corremos o risco de negar a interação com uma pessoa honesta e bem-intencionada por razões completamente equivocadas.
E, por fim: a salvação da humanidade não vem de onde a gente espera. Esse rapaz que saiu da sua rotina por alguns minutos para ajudar uma garota desesperada que por um momento nem quis admitir que precisava de ajuda, e depois voltou a pé para seu caminho no sol quente do final da manhã sem aceitar nada em troca me fez pensar sobre esperança. Esperança na humanidade mesmo. E uma esperança que não vem de um bairro limpo e plano com jardins bem-cuidados, mas que surge no topo de um morro esquecido e labiríntico.
Enquanto minha família usa argumentos absurdos para justificar escolhas preconceituosas, precisei me perder no meio do morro para encontrar um pouco de esperança. Seria assustador pensar em ver aquele rapaz de novo um dia, já que olhar para ele reflete meus privilégios e fraquezas e me obriga a pensar que independência não é autossuficiência absoluta, e que eu tive a sorte absoluta de ter sido salva por um momento de falta de cautela que poderia ter acabado muito mal, mas precisava dizer que essa pessoa existe, que pessoas como ele existem, mesmo que estejam escondidas em lugares que nos ensinam a evitar, que ter cautela é bom, mas se deixar levar exclusivamente pelos estereótipos não, e que a gente não precisa fazer muito para trazer esperança às pessoas ao nosso redor. Essa é a mensagem que ficou ao final da aventura.