A SEGUNDA–FEIRA GORDA DA RIBEIRA
Contam os mais velhos que teve sua origem na sede de diversão do povo que voltava da Guerra do Paraguai; todos queriam comemorar de alguma maneira o fato de estarem vivos e inteiros.
Os sobreviventes dirigiram-se a Santo Amaro ou ao Arraial de Candeias no início do mês de Fevereiro em barcos, saveiros, lanchas  atochados de músicos, tocadores de viola e trovadores, acompanhados por uma multidão de romeiros, todos com a roupa “de ver Deus”,como se dizia, prontos para a esbórnia, armando pelo caminho barracas cobertas de palha, que serviam de abrigo e botequins.
Eram três dias de música, danças e cachaçada.
A junção de muita gente e cachaça  resultava, claro, na perturbação da ordem, em brigas e até assassinatos. Por conta disto, muitas famílias começaram a refugar a festa.
Pois foi por estas alturas que o cabo Pero Luciano das Virgens, que pertenceu ao 41º esquadrão dos Voluntários da Pátria, numa segunda-feira logo após o domingo do Bonfim, tomou o rumo da Ribeira, na península de Itapagipe, levando uma barraca e todos os acessórios militares que usou na campanha. Durante a viagem ia o cabo, provavelmente meio avariado da cabeça, repetindo procedimentos de guerra, tais como:
- Fogo! Calar baioneta!
- Avançar! Carregar! - Fazendo o povo morrer de rir.
Chegando ao largo do Papagaio, o cabo ajoelhou-se e rezou, agradecendo ao Senhor do Bonfim por ter escapado com vida de cinco anos de luta e atrozes sofrimentos.
Assim nasceu a segunda-feira gorda da Ribeira, antes chamada segunda-feira do Bonfim.
Pequenos grupos, que logo foram aumentando, dirigiam-se em romaria para a Ribeira em bondes lotados, uns em pé, outros sentados, muitos nos estribos, alguns nas plataformas.
Apesar do desconforto, a viagem tinha sua graça, muita música, modinhas, cantadores, repentistas com cavaquinhos e violões, harmônica, não faltando, é claro, os ditos picarescos e engraçados.
Os que iam de bonde troçavam dos pedestres, atirando:
- Também já fui pobre!
Adeus, pobreza! Isso no meio de muitas gargalhadas e algazarra. Os pedestres revidavam “dando bananas” e fazendo gestos chulos para os motorizados.
O largo da Ribeira ficava  apinhado de gente alegre, formando cordões, cantando e tocando, enquanto as famílias forcejavam  para romper a enorme massa popular onde não cabia nem um alfinete. Os estabelecimentos comerciais fechavam as portas, mas havia um comércio de vendedores de comida e bebida para aplacar a sede e a fome da multidão. Alguns vendiam acessórios, como fitas coloridas, arranjos de cabeça dourados ou prateados, medidas e registros.
Os ranchos de reis davam a graça da sua presença, com seus estandartes ricamente trabalhados e seus componentes trajando roupas bordadas e de cores alegres.
A cidade ficava às moscas. Todos à Ribeira! Era o mote: cavalheiros, grupos musicais, famílias, namorados e visitantes concorriam para engalanar ainda mais a festa. Os mais gaiatos ensinavam:
-Tristezas não pagam dívidas.
Ou
- Quem canta seus males espanta!
Não raro aparecia um bêbado, tropicando, e um engraçadinho dizia:
- Êta rua mal calçada, gente!
Os versinhos eram ouvidos:
Psiu! Psiu! Psiu!
Anda cá meu bem.
Psiu! Psiu! Psiu!
Eu não vou lá não.
Onde vais morena,
Apressada assim?
Vou colher as flores
Lá do meu jardim.
Súbito, ruídos de muita animação; era um rancho chegando com sua música e alegria:
Cheguei, cheguei,
Cheguei agora;
Cheguei e neste instante
Andorinha vai embora.
Quando o burburinho era grande, algumas famílias se encolhiam, um pouco medrosas. O cordão mais próximo, percebendo o desconforto, cantava:
Sussú sossegue,
Vá dormir seu sono,
Está com medo,diga,
Quer dinheiro, tome.
Mas também tinha samba, dos bons, onde se ouvia batuques e castanholas:
Prá dor de dente, cocada
Prá indigestão, feijoada.
Mulher velha, na Bahia
Se eu fosse a morte, matava.
Casa de palha é molambo,
Se eu fosse o fogo, queimava.
Mulher alta, magra e feia
Se eu fosse a morte, matava.
Alguns não gostavam e diziam:
- Passa fora, malvado!
Os mais sensatos reclamavam:
- Isto vai dar em barulho. Vou-me embora; não me dou bem com a cachaça de ninguém.
Se  chegava alguém cheio de prosopopeia, bem vestido demais para a simpleza da festa, vinham os apupos:
- Engole ele, palitó, que o dono dele era maior.
Ou:
- Chapéu de pelo, engole ele!
Todo ano apareciam os novos dichotes, os ditos da moda, muita troça e muito trocista.
Havia bons poetas, que se destacavam da multidão, como Chico Sepúlveda, dono de belas canções, ou Manoel Ricardo, mas o povo ainda preferia os galhofeiros:
Ó minha vizinha
Domingo vou lá
Me guarde uma coisa
Qui não faça má.
A festa se elitizava um pouco lá para as bandas da Madragoa, onde, numa belíssima mansão, os mais abonados se divertiam, embasbacados com as sonatas ao piano, árias de ópera, violinos e flautistas com suas notas aveludadas.
O importante é que nesta cidade democrática todos se divertiam. E a vida corria feliz!
*TEXTO DO MEU LIVRO "A BAHIA DE OUTRORA".

 
 
 
 
 
Miriam de Sales Oliveira
Enviado por Miriam de Sales Oliveira em 21/01/2019
Reeditado em 18/01/2020
Código do texto: T6556092
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