Decadência na Rio-Bahia
(In: CONHECENDO MINAS - Poeira na estrada e becos apertados. Inédito)
A complexidade de Minas Gerais e de seus habitantes é suficiente para confundir as mentes mais lúcidas e para fazer desistir os mais obstinados em compreendê-la. Sou parte desta gente e não há como negar esta evidência.
O lugar onde esta questão me ocorreu foi logo depois de passar por Cachoeira do Pajeú e encontrar a Rio-Bahia, onde se tem todas as provas de que os mineiros gostam de ganhar dinheiro, mas não de investir para ganhar. Bastou andar um pouco pela estrada para encontrá-la – e tudo o que está à sua margem! – envelhecida e mal cuidada, embora ainda guardasse alguns de seus traços de majestade dos tempos pioneiros, em que ela, praticamente, inaugurou no Brasil o sistema equivocado de transporte de cargas pelo asfalto, a longas distâncias.
Tudo nela parecia ultrapassado, demodée, imerso numa triste decadência, mas nada pode chegar à ruína sem o descaso pela conservação das pessoas que detêm a posse dos bens. Quatro ou cinco décadas são um tempo demasiado longo para que as coisas possam permanecer no mesmo estado, exceto as pirâmides dos faraós, as catedrais góticas, os castelos medievais ou os templos dos incas.
E não estou falando somente da estrada e de seu traçado antiquado. Refiro-me a todas as estruturas básicas que compõem o conjunto de estabelecimentos integrados a ela. E não foi necessária muita argúcia para ver quão desagradável era este cartão postal. Logo de cara se podiam ver os postos e restaurantes de arquitetura arcaica, com alvenarias ligadas em ângulos retos, esquadrias metálicas oxidadas, pés-direitos altos e vigas de concreto surgindo entre os vãos.
Quando parei para almoçar esta imagem estava fielmente retratada nas paredes e pisos, onde se notavam, abraçadas, a negligência e a decadência: tristes azulejos encardidos, outrora brancos, cobrindo a metade das paredes; grandes e indevassadas paredes pintadas a óleo, salpicadas pelas sujeiras deixadas por mosquitos; cimentados lisos e cerâmicas baratas, de duvidosas formas hexagonais, recobertos de mil camadas de vermelhão e cera líquida; lâmpadas incandescentes, presas em bocais oxidados e interruptores embutidos, sem tampas, tudo com a fiação à mostra.
Nos postos de abastecimento os desanimados frentistas com seus uniformes sujos e descompostos eram lentos para chegar e abastecer e mais lentos ainda para cobrar. No calçamento de paralelepípedos viam-se as depressões formadas ao longo dos anos, nas quais acumulavam estopas, resíduos oleosos, poças d'água, larvas, insetos e restos de sujeira.
Mais coisas aumentavam ainda este quadro de abandono: estruturas metálicas corroídas, pinturas descascadas das bombas de combustíveis e um monte de acréscimos improvisados: o tambor cortado servindo para armazenar a mistura de água e detergente e a mesma vassoura grosseira usada na limpeza do pátio também espalhava água nos pára-brisas.
E o risco de fazer refeições naqueles restaurantes parecia imenso. Era um dia em que estava disposto a honrar o estômago com suas exigências. Mas, ao entrar no restaurante, reconheci nele todos esses detalhes; vasculhei o ambiente com os olhos, à procura dos azulejos brancos encardidos, da viga de concreto surgindo no meio do vão, do piso de cerâmica vermelha hexagonal e do balcão de alvenaria. E tudo estava lá, absolutamente igual, como numa casa de espíritos.
Os banheiros, feminino e masculino, separados por uma pia esmaltada colocada externamente, identificados por fotos de Carla Peres e Alexandre Pires, a modernidade volátil, com ciclos de vida absolutamente efêmeros.
Cerca de quinze pessoas almoçavam ali a chamada comida da baixa gastronomia de estrada. Em estrita obediência aos insistentes avisos, todos estavam de camisas enfiadas, mas não abotoadas. Os caminhoneiros glutões eram freneticamente servidos por uma mocinha diligente que deslizava pelo salão de serviço com gingas de corpo e alguns pas de deux entre os comensais, descalça mesmo, para andar mais rápido e não tropeçar nas cadeiras. Algumas mesas foram ajuntadas, como num casamento à La Dom Corleone, onde comiam os que se sentiam mais companheiros.
A diligente moçoila valia por dez e carregava pilhas e pilhas de travessas, com o polegar displicentemente enfiado dentro delas, numa sequência digna de desenho animado. Quando necessário vinha em seu auxílio, lá da cozinha, uma negra esguia, com a mesma vivacidade, trazendo pratos e talheres. Fui servido rapidamente, ao mesmo tempo em que ela verificava as mesas, repunha comidas quando as travessas se esgotavam, trazia mais e mais garrafas de água de torneira e servia cafezinhos.
Minha mesa foi literalmente aterrada por um batalhão de pratos. Não havendo mais espaço onde colocá-los a chave de meu carro desapareceu entre eles. Quase todas as comidas estavam com a leve aparência de, num passado mais ou menos recente, terem sido recusadas em outra mesa. O frango, recém-chegado, devia ter sido passado em fogo rápido, queimado por fora e cru por dentro – e uma incisão mais profunda o confirmou.
Quando pensei que tudo havia terminado, chegaram mais duas espécies generosas de carne. Uma delas, um tipo ignorado e recortado em cubos, colocada dentro de uma travessa onde se encontrava um grosso caldo de mandioca. E depois, finalmente, dentro de um prato raso, um bife quase tostado, com uma rodela de cebola refogada às costas. Em dúvida sobre o que recusar, notei que assim não comeria nada.
Aproveitei meu estado de espírito para observar a voracidade com que meus vizinhos engoliam suas comidas; garfadas generosas entravam pelas bocas abertas até quase às orelhas e, não raro, uns e outros faziam trocas de travessas como os garotos trocam figurinhas: dois Dungas por um Ronaldinho. E tome água, quase um copo por vez, para fazer descer aquele bolo alimentar. Em breves minutos, eles arrotariam um pouco, iriam ao banheiro para se desfazer dos excessos e em seguida, plenos de felicidade, voltariam para um merecido cochilo na boléia e depois novamente para as estradas e seus pequenos sonhos.
O proprietário dava voltas e voltas em torno de mim, sem falar nada. De repente, enchendo-se de coragem, me perguntou se eu não estava gostando da comida. Era do tipo insistente como uma tia-avó: comida é para ser comida. Ele me disse que estava sem jeito de dar o preço pelo tanto que comi quando fui pagar a conta. Eu lhe perguntei:
- Quanto os outros pagam?
- Três e cinquenta, para comer à vontade.
- Pois eu também comi à vontade - e deixei em suas mãos os três e cinquenta da tabela, voltando para a estrada.
O lugar onde esta questão me ocorreu foi logo depois de passar por Cachoeira do Pajeú e encontrar a Rio-Bahia, onde se tem todas as provas de que os mineiros gostam de ganhar dinheiro, mas não de investir para ganhar. Bastou andar um pouco pela estrada para encontrá-la – e tudo o que está à sua margem! – envelhecida e mal cuidada, embora ainda guardasse alguns de seus traços de majestade dos tempos pioneiros, em que ela, praticamente, inaugurou no Brasil o sistema equivocado de transporte de cargas pelo asfalto, a longas distâncias.
Tudo nela parecia ultrapassado, demodée, imerso numa triste decadência, mas nada pode chegar à ruína sem o descaso pela conservação das pessoas que detêm a posse dos bens. Quatro ou cinco décadas são um tempo demasiado longo para que as coisas possam permanecer no mesmo estado, exceto as pirâmides dos faraós, as catedrais góticas, os castelos medievais ou os templos dos incas.
E não estou falando somente da estrada e de seu traçado antiquado. Refiro-me a todas as estruturas básicas que compõem o conjunto de estabelecimentos integrados a ela. E não foi necessária muita argúcia para ver quão desagradável era este cartão postal. Logo de cara se podiam ver os postos e restaurantes de arquitetura arcaica, com alvenarias ligadas em ângulos retos, esquadrias metálicas oxidadas, pés-direitos altos e vigas de concreto surgindo entre os vãos.
Quando parei para almoçar esta imagem estava fielmente retratada nas paredes e pisos, onde se notavam, abraçadas, a negligência e a decadência: tristes azulejos encardidos, outrora brancos, cobrindo a metade das paredes; grandes e indevassadas paredes pintadas a óleo, salpicadas pelas sujeiras deixadas por mosquitos; cimentados lisos e cerâmicas baratas, de duvidosas formas hexagonais, recobertos de mil camadas de vermelhão e cera líquida; lâmpadas incandescentes, presas em bocais oxidados e interruptores embutidos, sem tampas, tudo com a fiação à mostra.
Nos postos de abastecimento os desanimados frentistas com seus uniformes sujos e descompostos eram lentos para chegar e abastecer e mais lentos ainda para cobrar. No calçamento de paralelepípedos viam-se as depressões formadas ao longo dos anos, nas quais acumulavam estopas, resíduos oleosos, poças d'água, larvas, insetos e restos de sujeira.
Mais coisas aumentavam ainda este quadro de abandono: estruturas metálicas corroídas, pinturas descascadas das bombas de combustíveis e um monte de acréscimos improvisados: o tambor cortado servindo para armazenar a mistura de água e detergente e a mesma vassoura grosseira usada na limpeza do pátio também espalhava água nos pára-brisas.
E o risco de fazer refeições naqueles restaurantes parecia imenso. Era um dia em que estava disposto a honrar o estômago com suas exigências. Mas, ao entrar no restaurante, reconheci nele todos esses detalhes; vasculhei o ambiente com os olhos, à procura dos azulejos brancos encardidos, da viga de concreto surgindo no meio do vão, do piso de cerâmica vermelha hexagonal e do balcão de alvenaria. E tudo estava lá, absolutamente igual, como numa casa de espíritos.
Os banheiros, feminino e masculino, separados por uma pia esmaltada colocada externamente, identificados por fotos de Carla Peres e Alexandre Pires, a modernidade volátil, com ciclos de vida absolutamente efêmeros.
Cerca de quinze pessoas almoçavam ali a chamada comida da baixa gastronomia de estrada. Em estrita obediência aos insistentes avisos, todos estavam de camisas enfiadas, mas não abotoadas. Os caminhoneiros glutões eram freneticamente servidos por uma mocinha diligente que deslizava pelo salão de serviço com gingas de corpo e alguns pas de deux entre os comensais, descalça mesmo, para andar mais rápido e não tropeçar nas cadeiras. Algumas mesas foram ajuntadas, como num casamento à La Dom Corleone, onde comiam os que se sentiam mais companheiros.
A diligente moçoila valia por dez e carregava pilhas e pilhas de travessas, com o polegar displicentemente enfiado dentro delas, numa sequência digna de desenho animado. Quando necessário vinha em seu auxílio, lá da cozinha, uma negra esguia, com a mesma vivacidade, trazendo pratos e talheres. Fui servido rapidamente, ao mesmo tempo em que ela verificava as mesas, repunha comidas quando as travessas se esgotavam, trazia mais e mais garrafas de água de torneira e servia cafezinhos.
Minha mesa foi literalmente aterrada por um batalhão de pratos. Não havendo mais espaço onde colocá-los a chave de meu carro desapareceu entre eles. Quase todas as comidas estavam com a leve aparência de, num passado mais ou menos recente, terem sido recusadas em outra mesa. O frango, recém-chegado, devia ter sido passado em fogo rápido, queimado por fora e cru por dentro – e uma incisão mais profunda o confirmou.
Quando pensei que tudo havia terminado, chegaram mais duas espécies generosas de carne. Uma delas, um tipo ignorado e recortado em cubos, colocada dentro de uma travessa onde se encontrava um grosso caldo de mandioca. E depois, finalmente, dentro de um prato raso, um bife quase tostado, com uma rodela de cebola refogada às costas. Em dúvida sobre o que recusar, notei que assim não comeria nada.
Aproveitei meu estado de espírito para observar a voracidade com que meus vizinhos engoliam suas comidas; garfadas generosas entravam pelas bocas abertas até quase às orelhas e, não raro, uns e outros faziam trocas de travessas como os garotos trocam figurinhas: dois Dungas por um Ronaldinho. E tome água, quase um copo por vez, para fazer descer aquele bolo alimentar. Em breves minutos, eles arrotariam um pouco, iriam ao banheiro para se desfazer dos excessos e em seguida, plenos de felicidade, voltariam para um merecido cochilo na boléia e depois novamente para as estradas e seus pequenos sonhos.
O proprietário dava voltas e voltas em torno de mim, sem falar nada. De repente, enchendo-se de coragem, me perguntou se eu não estava gostando da comida. Era do tipo insistente como uma tia-avó: comida é para ser comida. Ele me disse que estava sem jeito de dar o preço pelo tanto que comi quando fui pagar a conta. Eu lhe perguntei:
- Quanto os outros pagam?
- Três e cinquenta, para comer à vontade.
- Pois eu também comi à vontade - e deixei em suas mãos os três e cinquenta da tabela, voltando para a estrada.
(In: CONHECENDO MINAS - Poeira na estrada e becos apertados. Inédito)