CASO ÚNICO

Para o chefe da Casa Civil, um liquidificador em casa é tão perigoso para uma criança quanto uma arma de fogo. No entanto, ele só recomenda guardar num cofre a arma.

Claudio Chaves

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Quando a razão é substituída pela emoção e a superstição toma o lugar da ciência, quando críticos se tornam admiradores, e quem julga se transforma em devoto de quem é julgado, o caminho para a barbárie está aplainado e, em nome de Deus e da moral (segundo os que julgam ter recebido a incumbência divina para a definirem), todo tipo de desatino pode ser cometido e perfeitamente aceito e justificado.

No Brasil de “Deus acima de todos” [e João de Deus odiado por todos], por exemplo, a palavra coerência passou a ser considerada persona non grata ou, no mínimo, desnecessária quando se trata de ponderar sobre discursos versus práticas.

Sendo assim, é perfeitamente admissível, compreensível e até elogiável que as principais autoridades (incluindo o presidente da República) do País falem em unir a nação, mas dizem reconhecer como íntegras e dignas de tratamento civilizado apenas os integrantes de organizações que os apoiem e que concordem com seus pensamentos; os demais (incluindo, deputados, senadores, governadores – todos igualmente eleitos pelo voto democrático) são marginais e integrantes de facções criminosas.

Também não há nada de estranho ou contracensual em condenar governos latino-americanos “antidemocráticos, tiranos, ditadores... uma ameaça ao Brasil” e, simultaneamente, fortalecer e estreitar relações diplomáticas e comerciais com a China onde, há mais de meio século, apenas um partido político pode ser admitido, não há eleições, os cidadãos são vigiados – inclusive em suas comunicações particulares e institucionais – quase existe legislação trabalhista e muito menos proteção contra a exploração de mão-de-obra infantil.

Também é natural e mais do que compreensível que se acabe a gestão baseada em critérios ideológicos (pois “a questão ideológica é mais grave do que a corrupção”) e, para tanto, exonere-se todo e qualquer ocupante de cargo nomeado da administração pública que pertença a correntes ideológicas divergentes; e que o critério básico para as novas nomeações sejam exatamente a afinidade ideológica com os novos tempos, aqui subentendido como o pensamento dos novos donos do país.

Nenhuma dessas declarações e ações é ideológica – é apenas “Deus acima de todos; e o Brasil acima de tudo”.

E nesse desfile ininterrupto de delírios e insanidades, o principal interlocutor do presidente (ministro chefe da Casa Civil) afirma que: o risco que uma arma de fogo em casa oferece para uma criança é o mesmo que um liquidificador – embora não haja, até hoje, nenhum registro (no Brasil nem no mundo) de criança morta por disparo de liquidificador, e nem o genial ministro tenha recomendado que quem pretenda comprar liquidificador adquira também um cofre.

Enquanto isso, o presidente, que entende que não é apenas isso, mas um eleito por Deus para “libertar a nação da mentira, da corrupção, do comunismo, da ideologia de gênero e, principalmente, do satânico kit gay”, pretende classificar como terrorismo as ações de movimentos como o MST (Movimento dos Sem Terra) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), entre outros.

O hilário da proposta é que, só no Estado do Pará, de 1996 a 2016, pelo menos 271 pessoas ligadas a movimentos desse tipo foram assassinadas em ações comandadas por gente do agronegócio, extrativismo ilegal, grilagem de terras públicas ou pelo próprio Estado, como no caso de Carajás/96; no entanto, os mortos é que são os terroristas.

Apenas os casos catalogados de 2014 a 2017 de assassinatos de trabalhadores rurais e lideranças de movimentos sindicais rurais, MST e similares somam 205. Só em 2017 foram 65, incluindo as chacinas de Colniza/MT (9 mortos) e a de Pau D’arco/PA (10 mortos).

Nessa conta não entram os mais de 50 mil trabalhadores resgatados de condições de trabalho análogo à escravidão nos últimos 20 anos.

De fato, nesse particular, o Brasil deve ser ímpar: o único caso no mundo em que quem assassina e quem manda assassinar são vítimas – e, portanto, precisam da proteção máxima do Estado –; e os que são assassinados são terroristas perigosos, que precisam ser exterminados, sob pena de levarem o País a sua completa e irreversível destruição.

A marcha continua.